Verdade


Se apenas houvesse uma única verdade, não poderiam pintar-se cem telas sobre o mesmo tema.

Picasso

quinta-feira, 30 de dezembro de 2010

Filhos: Ter ou não ter?

Por Regina Navarro Lins

É raro encontrar uma mulher com mais de 35 anos que, não tendo filhos, esteja tranqüila quanto à possibilidade de nunca vir a ser mãe. Com o passar do tempo, algumas tomam decisões que não podem mais ser adiadas: escolhem qualquer homem para ser pai do seu filho ou então, numa medida mais extrema, buscam num banco de sêmen um doador desconhecido. Será que todas essas mulheres inquietas quanto à maternidade desejam realmente ter filhos? Ser mãe seria então um desejo inerente à natureza da mulher, que só assim alcançaria a plena realização? Não acredito em nada disso. Mesmo porque a maternidade, como vários outros aspectos da nossa vida tidos como inquestionáveis, tem uma história.

Em todas as épocas e lugares, a partir da instituição do patriarcado, era comum o homem repudiar a mulher e se casar novamente. Para isso não faltavam pretextos e um dos mais convincentes era o não nascimento de um filho. Afinal, ele queria ter um herdeiro ou mais braços para ajudá-lo no trabalho. O contrato de casamento era feito entre as duas famílias e, caso a mulher não procriasse, era devolvida aos pais ou ia para um convento. O casamento só se tornou indissolúvel a partir do século XIII, quando a Igreja passou a controlá-lo. Entretanto, observando a forma como as mães se relacionavam com os filhos nos séculos XVII e XVIII, fica claro que não somente o desejo ter filhos, mas também o amor materno, não é inerente às mulheres. É um sentimento que pode ou não se desenvolver, dependendo dos interesses sócio-econômicos de um grupo.

Naquela época a amamentação passou a ser considerada ridícula e repugnante e não era considerado digno de uma mulher amamentar seu próprio filho. Só para se ter uma idéia, das 20 mil crianças nascidas em Paris, em 1780, menos de mil foram amamentadas pelas mães. Todas as outras foram morar com amas-de-leite, na maioria das vezes mulheres doentes, que nem leite tinham. Os pedagogos recomendavam aos pais frieza em relação aos filhos, lembrando-lhes incessantemente sua malignidade natural, que seria pecado alimentar. E as mães eram criticadas duramente caso demonstrassem ternura. A finalidade da educação era salvar a alma do pecado; para isso não se poupavam argumentos para convencer as mães de que as crianças deveriam ser severamente castigadas.

Mas houve uma grande reviravolta. A inclusão da idéia do amor romântico como possibilidade para o casamento, junto a outras várias influências, transformaram as mentalidades a partir do final do século XVIII. Com o surgimento das fábricas e escritórios, a área doméstica começou a se opor à área pública, cultivando-se a casa como lar e a necessária privacidade. Ocorreu então o que alguns autores denominam "a invenção da maternidade". O novo papel da mulher, a mãe idealizada, originou uma nova concepção de feminilidade. A imagem da esposa e mãe reforçou um modelo diferente para os dois sexos das atividades e dos sentimentos. Associou-se maternidade a feminilidade, como sendo atributos da personalidade.

No século passado várias teorias foram criadas sustentando que o único prazer da mulher era ter filhos e criá-los, e que ela não se interessaria por sexo. Seu aparelho genital serviria tão somente à procriação. O fato de ser capaz de ter filhos passou a significar que os desejaria naturalmente. Claro que essas idéias, além de comprometerem a sexualidade feminina, atuam como pressão ideológica. Muitas mulheres acreditam que desejam filhos sem que esse desejo realmente exista. Quando o condicionamento cultural é muito forte, ao nos tornar adultos não sabemos mais diferenciar o que desejamos realmente e o que aprendemos a desejar.

Atualmente outra grande transformação está em andamento. Para as mulheres que julgam que sua realização pessoal depende do êxito profissional, a questão da maternidade se coloca em outros termos. Elas têm filhos cada vez mais tarde e esperam de seus parceiros uma divisão igualitária nos trabalhos domésticos e na educação das crianças. E a crescente rejeição aos modelos tradicionais de comportamento permite que se percebam com mais clareza os próprios desejos. Ter ou não ter filhos passa a ser uma opção individual, longe da cobrança de corresponder ao modelo imposto de mulher ideal.

Ter ou Não Ter Filhos?

Flávio Gikovate - Novembro/2000
É incrível, mas até hoje os casais que decidem não ter filhos são olhados com desconfiança, como se estivessem traindo a sociedade e a espécie humana. O argumento que sustenta as críticas – e atinge principalmente a mulher – é o da necessidade de satisfação do instinto materno: “só mesmo uma mulher muito desalmada não tenderia a exercer seus impulsos naturais.” Assim se manifestam as pessoas que seguem os passos de nossos ancestrais, sem nunca refletir sobre o modo como devemos conduzir nossas vidas.
(...)
Quando pensamos sobre o passado da nossa espécie, percebemos duas importantes características. A primeira: a reprodução era, como regra, uma manifestação indireta do nosso poderoso instinto sexual – e não da vontade de ser mãe! Com tanto desejo e com recursos anticoncepcionais tão pobres e pouco conhecidos, os casais já voltavam da lua-de-mel “grávidos”. A preocupação com o tema sempre foi muito maior do que a atual. As pessoas viam as mulheres que não engravidavam como problemáticas, detentoras de algum distúrbio.
A segunda característica se refere à função das crianças na vida familiar do passado. Todos festejavam o nascimento como uma importante conquista. Famílias numerosas podiam arar extensões maiores de terra, o que produzia maiores lucros. Além dos benefícios materiais, os pais contavam com outra vantagem: teriam amparo na velhice. Não havia dúvidas sobre o assunto.
E hoje? Por que ter filhos nestes dias tão cheios de contratempos e dificuldades? As razões que estiveram a favor da reprodução ao longo de séculos não existem mais: eles não cuidarão de nós na velhice e só alguns nos trarão benefício prático – é claro que existem exceções. Eles tendem a ser dependentes por tempo indeterminado, nos custam muito dinheiro e dificilmente poderão – ou acharão que devem – retribuir algo. Outra coisa: o sexo e a reprodução deixaram de ter a correspondência de antes.
Temos de aprender a pensar sobre nós e nosso tempo. Não faz mais sentido engravidar “porque todo mundo engravida”. Precisamos respeitar os casais que decidem não ser pais, o que indica que preferem se dedicar a outras causas a se sentir perpetuados em seus descendentes, a cuidar de crianças e acompanhar seu crescimento ou a se beneficiar da alegria e da agitação que levam para os lares. Ter ou não filhos deve ser assunto de discussão para cada casal, uma vez que a decisão é muito relevante para o modo de vida que deseja imprimir à sua existência. Não existe um caminho melhor que o outro.

 Ser pai ou mãe não é obrigatório, mas facultativo

segunda-feira, 27 de dezembro de 2010

Só Falta a Trilha Sonora

Por Pablo Capistrano

Às vezes eu tenho aquela sensação desconcertante que Deus é uma espécie de diretor de cinema. É possível que Ele tenha conseguido um roteiro do universo (alguns suspeitam que esse tal roteiro tenha sido escrito pelo Cão, mas não existem evidências suficientes para comprovar a afirmativa) e juntado recursos financeiros no vazio eterno sem limites para construir essa estranha narrativa que é a vida de cada um.
Tenho apenas duas reclamações em relação ao diretor desse filme. Uma é que raramente a trilha sonora funciona (nos melhores e piores momentos da minha vida eu sempre sonhei com a música certa, caindo do céu como uma chuva do Caju no começo do verão). Outra é que a gente sempre morre no final, sem ter tempo de ver subir os créditos para saber quem faz parte da equipe de apoio, e o nome verdadeiro dos personagens com quem a gente contracena.

Tenho certeza que nesse fim de semana, todo brasileiro que tem uma TV dentro de casa, partilhou comigo dessa estranha metafísica cinematográfica. As imagens da “guerra do Rio” pareciam ter sido ensaiadas na consciência nacional nos dois filmes da série Tropa de Elite, dirigidos pelo José Padilha.

A imagem do Wagner Moura (o desde já eterno capitão nascimento) entrando no restaurante para conversar com o personagem do secretário de segurança do Rio (ou coisa que o valha) e sendo aplaudido de pé pelos clientes, em Tropa de Elite 2, parece ter servido de mote para a cobertura da imprensa nacional.

Os militares, depois de quase trinta anos do fim do regime de 1964, voltavam a ser vistos como heróis da pátria e da liberdade. Sem querer cortar a onda da euforia cívica com a chegada do capitão nascimento ao noticiário nacional talvez seja importante pontuar duas coisas.

Primeiro: as operações do Rio não podem ser lidas como um “combate ao tráfico de drogas”. Não se combate uma indústria apelando apenas para operações militares. O tráfico de cocaína tem ramificações que ligam diversos setores pesados da economia mundial. Fábricas de armas, indústrias químicas, bancos que dão sustentação ao sistema financeiro internacional, proprietários de terra. A cocaína movimenta um volume imenso de dinheiro e é uma piada pensar que se pode acabar com um negócio tão lucrativo com ações militares. Walter Maierovitch, no último Globo News Painel, citando uma edição do The Observer de 22/12/2009 apontou para o fato de a ONU ter reconhecido que o sistema interbancário não havia quebrado completamente na última crise global devido ao dinheiro da criminalidade internacional.

Dinheiro é um troço que não tem cheiro e convencer “os homens de bem” que indiretamente lucram com o tráfico a reduzir seus lucros em prol do “bem estar” e da “saúde social” é tão ingênuo quanto achar que um capitalista faz sapatos por amor aos pés da humanidade.

Mais há outro ponto importante: não podemos mais sustentar a ideia do traficante como um Robin Wood dos morros. Durante um bom tempo alguns exegetas das ciências humanas defenderam uma visão romântica do “soldado do morro” semelhante aquela que posicionou Lampião como um herói dos oprimidos que lutava contra o poder cruel dos oligarcas sertanejos. As relações entre o Cangaço e poder político dos coronéis, hoje está mais do que equacionada pelos especialistas.

Os traficantes cariocas não são adeptos de nenhuma ideologia política, não atuam em nome da religião, da comunidade ou de um princípio metafísico de justiça. Como muitos dos velhos cangaceiros dos sertões, eles mantém relações estreitas com o mesmo sistema econômico e político que supostamente os oprime. Não são “protetores” da comunidade nem defensores dos interesses dos moradores da favela.

Seu impulso não é substancialmente diferente do impulso daqueles que lotam os salões dos shopping centers nessa época de décimo terceiro. Consumir, ganhar dinheiro, reproduzir na favela um pedaço do calçadão de Copacabana. Ter sexo, dinheiro, poder, prestigio social. Eles são tediosamente iguais a qualquer consumidor mediano em seus objetivos (são diferentes justamente nos métodos que usam).

A despeito dos esforços das redes de televisão em me convencer que a vida é um filme eu não sei mais qual é o gênero da película que nós brasileiros fazemos parte. Talvez seja uma tragédia, uma comédia farsesca, um grande épico de aventura ou quem sabe, apenas um velho e surrado filme de guerra. Talvez, se as reportagens tivessem trilha sonora a gente pudesse descobrir qual é a desse diretor que criou esse mundo paralelo chamado Brasil

sábado, 25 de dezembro de 2010

Sabe por que Papai Noel não existe?

Martha Medeiros

Porque é homem. Dá para acreditar que um homem vai se preocupar em escolher o presente de cada pessoa da família, ele que nem compra as próprias meias? Que andaria num trenó puxado por renas, sem ar condicionado, direção hidráulica e air-bag? Que pagaria o mico de descer por uma chaminé para receber em troca o sorriso das criancinhas? Ele não faria isso nem pelo sorriso da Luana Piovani !

Mamãe Noel, sim, existe.

Quem coloca guirlandas nas portas, velas perfumadas nos castiçais, arranjos e flores vermelhas pela casa? Quem monta a árvore de Natal, harmonizando bolas, anjos, fitas e luzinhas, e deixando tudo combinando com o sofá e os tapetes? E quem desmonta essa parafernália toda no dia 6 de janeiro? Papai Noel ainda está de ressaca no Dia de Reis.

Quem enche a geladeira de cerveja, coca-cola e champanhe? Quem providencia o peru, o arroz à grega, o sarrabulho, as castanhas, o musse de atum, as lentilhas, os guardanapinhos decorados, os cálices lavadinhos, a toalha bem passada e ainda lembra de deixar algum disco meloso à mão?

Quem lembra de dar uma lembrancinha para o zelador, o porteiro, o carteiro, o entregador de jornal, o cabeleireiro, a diarista? Quem compra o presente do amigo-secreto do escritório do Papai Noel ? Deveria ser o próprio, tão magnânimo, mas ele não tem tempo para essas coisas. Anda muito requisitado como garoto propaganda.

Enquanto Papai Noel distribui beijos e pirulitos, bem acomodado em seu trono no shopping, quem entra em todas as lojas, pesquisa todos os preços, carrega sacolas, confere listas, lembra da sogra, do sogro, dos cunhados, dos irmãos, entra no cheque especial, deixa o carro no sol e chega em casa sofrendo porque comprou os mesmos presentes do ano passado?

Por trás do protagonista desse megaevento chamado Natal existe alguém em quem todos deveriam acreditar mais.

Martha Medeiros

sexta-feira, 24 de dezembro de 2010

Dá para piorar?

Por Hélio Schwartsman

Hoje eu pretendia regalar o leitor com um comentário acerca das bases neurológicas do dualismo, mas, como estamos a menos de duas semanas da eleição, optei por guardar o libelo anticartesiano para uma ocasião mais tranquila e abordar um tema de maior densidade política. Juro, entretanto, que não vou falar de madre Dilma e são Serra, dos quais o leitor já deve estar saturado. O ponto que eu gostaria de discutir é mais profundo.

A democracia brasileira já fez notáveis avanços. O mais importante deles é que ela vem existindo sem interrupções há um quarto de século. Não é muito, mas mesmo as mais vetustas democracias do planeta tiveram de completar seus primeiros 25 anos. Igualmente importante, nesse período experimentamos uma real alternância de poder, que se deu sem traumas ou problemas, ao contrário do que prognosticavam setores influentes. Ainda que aos trancos, instituições se fortaleceram.
Há, é claro, muito mais por fazer. E já nem menciono o megarretrocesso que foi a canonização do pleito na reta final. Um dos problemas a meu ver mais gritantes é que, no plano institucional, o cidadão continua a ser tratado como um débil mental, que precisa ser protegido de si mesmo e tutelado pelo Estado.

O sintoma paroxístico dessa incongruência é a obrigatoriedade do voto. É absurda a ideia de que eu possa escolher, por sufrágio, as principais autoridades do Executivo e os membros do Parlamento, que escreverão e aplicarão as leis do país, mas seja considerado incapaz de decidir por mim mesmo se devo ou não comparecer às urnas. Um pequeno incômodo bienal em troca de uma democracia verdadeiramente representativa, dizem os patronos da medida. Discordo. O que está em jogo aqui são os próprios pressupostos da República: o Estado contemporâneo existe para servir ao cidadão, não o cidadão para servir ao Estado --pelo menos é o que defendo.

De toda maneira, esse está longe de ser o único caso de inversão de valores. Se há um vício que há muito corrói e onera a sociedade é o do corporativismo. Na semana passada, foi divulgada uma boa notícia: entre julho e agosto deste ano, os divórcios no Estado de São Paulo aumentaram 149% contra igual período do ano anterior. Calma, eu não sou um inimigo da família --embora esteja ficando, de tanto que ouvi falar em "valores cristãos" nas últimas semanas. O fenômeno ocorre porque, após a promulgação em julho da emenda constitucional que simplificou o processo, ficou bem mais fácil e barato para casais que já estavam separados regularizar sua situação. Ótimo. Somos todos contra a burocracia desnecessária. Só que essa não é a história inteira.

Além da já referida emenda constitucional, responde pelo aumento dos divórcios o projeto de lei 6.416, aprovado em 2007, e que simplificou as separações consensuais de casais sem filhos menores, dispensando-as de passar pelo crivo do Judiciário. Desde então, basta um registro público em cartório para consolidar a dissolução do matrimônio. (Podemos é claro nos perguntar por que diabos alguns ainda insistem em informar o Estado de que pretendem viver juntos, mas essa é uma outra questão).

Só que o PL 6.416 original era muito melhor e foi piorado pelo lobby da toga. Por intermédio do deputado e advogado Maurício Rands (PT-PE), a república dos bacharéis conseguiu introduzir uma emenda que obrigou as partes a contratarem os serviços de um advogado. Com isso, a separação se tornou um pouco menos simples e mais cara. Na verdade, bem mais cara. Em São Paulo, um advogado cobra, de acordo com a tabela da OAB, um valor mínimo de R$ 1.333,38 --e ainda pode levar 6% dos bens a repartir-- apenas para vistar a papelada. É claro que os cartórios não registram a separação sem o visto do causídico.

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva não teve a coragem de vetar essa excrescência, de modo que o projeto acabou sendo aprovado com a alteração ditada pelo lobby da OAB. No mínimo, a norma viola o princípio da razão suficiente: se não é necessário consultar um advogado para casar-se, tampouco deve ser obrigatório ouvir um na hora de dissolver a união por comum acordo. Mas é melhor eu parar antes que alguém tenha a ideia de fazer uma lei tornando necessária a presença de advogados em altares e dosséis.

Diga-se em favor dos advogados que colocar os interesses da categoria à frente dos da população não é exclusividade sua. Na mesma senda caminham notários, médicos, jornalistas, políticos. Prova o que eu digo a PEC dos cartórios, o projeto de lei do ato médico, a PEC do diploma de jornalista e, no caso dos políticos, quase tudo o que o Parlamento aprova.

Infelizmente, o Brasil é o país das corporações. Indivíduos e categorias profissionais, em vez de firmar-se pela excelência dos serviços que oferecem, preferem pegar uma carona no autoritarismo estatal para tornar sua atividade exclusiva quando não obrigatória.

Duvida? Tramitam no Congresso Nacional projetos que regulamentam, entre outras, as profissões de modelo de passarela (PL 4983/09), designer de interiores (PL 4525/08), detetives (25 PLs diferentes), babás (PL 1385/07), escritores (PL 3034/92), demonstrador de mercadorias (PL 5451/09), cerimonialista (PL 5425/09, cerimonialista (PL 5425/09), educador social (PL 5346/09), fotógrafo (PL 5187/09), depilador (PL 4771/09). Já resvalando no reino da fantasia, busca-se também regulamentar a ocupação de astrólogo (PL 6748/02) e terapeuta naturista (PL 2916/92).
O problema é que qualquer grupo que tenha um mínimo de organização obtém sucesso senão em todos os pleitos ao menos em parte deles. O resultado é uma miríade de leis e regulamentos que, afora atender às demandas corporativas, só servem para frustrar direitos e dificultar a vida.

Estas são algumas das questões que eu gostaria de ver discutidas na campanha eleitoral: Que tipo de Estado os brasileiros desejam? Quanto estão dispostos a pagar em impostos para obtê-lo? E de quanta autonomia vão querer abrir mão? É factível, razoável ou desejável que o Estado proíba um cidadão de usar drogas ou praticar aborto? Qual é o núcleo de direitos fundamentais que estão protegidos até mesmo de legisladores?

São essas as questões que os candidatos não discutem, pois isso implicaria revelar os setores que sairiam perdendo. E, para não perder votos, eles estão dispostos a ajoelhar-se, comungar e, mais grave, renegar as ideias que muito razoavelmente defenderam no passado. Estava errado o Tiririca: dá, sim, para piorar

quarta-feira, 22 de dezembro de 2010

PRA QUE SERVE UMA RELAÇÃO?

Drauzio Varela

Definição mais simples e exata sobre o sentido de mantermos uma relação: "uma relação tem que servir para tornar a vida dos dois mais fácil".

Vou dar continuidade a esta afirmação porque o assunto é bom e merece ser desenvolvido. Algumas pessoas mantém relações para se sentirem integradas na sociedade, para provarem a si mesmas que são capazes de ser amadas, para evitar a solidão, por dinheiro ou por preguiça. Todos fadados à frustração.
Uma relação tem que servir para você se sentir 100% à vontade com outra pessoa, à vontade para concordar com ela e discordar dela, para ter sexo sem não-me-toques ou para cair no sono logo após o jantar, pregado.
Uma relação tem que servir para você ter com quem ir ao cinema de mãos dadas, para ter alguém que instale o som novo enquanto você prepara uma omelete, para ter alguém com quem viajar para um país distante, para ter alguém com quem ficar em silêncio sem que nenhum dos dois se incomode com isso.
Uma relação tem que servir para, às vezes, estimular você a se produzir, e, quase sempre, estimular você a ser do jeito que é, de cara lavada e bonita a seu modo.
Uma relação tem que servir para um e outro se sentirem amparados nas suas inquietações, para ensinar a confiar, a respeitar as diferenças que há entre as pessoas, e deve servir para fazer os dois se divertirem demais, mesmo em casa, principalmente em casa.
Uma relação tem que servir para cobrir as despesas um do outro num momento de aperto, e cobrir as dores um do outro num momento de melancolia, e cobrirem o corpo um do outro quando o cobertor cair.
Uma relação tem que servir para um acompanhar o outro no médico, para um perdoar as fraquezas do outro, para um abrir a garrafa de vinho e para o outro abrir o jogo, e para os dois abrirem-se para o mundo, cientes de que o mundo não se resume aos dois.

segunda-feira, 20 de dezembro de 2010

A VIDA

Por Henfil

"Por muito tempo eu pensei que a minha vida fosse se tornar uma vida de verdade.


Mas sempre havia um obstáculo no caminho, algo a ser ultrapassado antes de começar a viver, um trabalho não terminado, uma conta a ser paga.Aí sim, a vida de verdade começaria.

Por fim, cheguei a conclusão de que esses obstáculos eram a minha vida de verdade.Essa perspectiva tem me ajudado a ver que não existe um caminho para a felicidade.A felicidade é o caminho!

Assim, aproveite todos os momentos que você tem.
E aproveite-os mais se você tem alguém especial para compartilhar, especial o suficiente para passar seu tempo;e lembre-se que o tempo não espera ninguém.

Portanto, pare de esperar até que você termine a faculdade;
Até que você volte para a faculdade;
até que você perca 5 quilos;
até que você ganhe 5 quilos;
até que você tenha tido filhos;
até que seus filhos tenham saído de casa;
até que você se case;
até que você se divorcie;
até sexta à noite;
até segunda de manhã;
até que você tenha comprado um carro ou uma casa nova;
até que seu carro ou sua casa tenham sido pagos;
até o próximo verão,
outono, inverno;
até que você esteja aposentado;
até que a sua música toque;
até que você tenha terminado seu drink;
até que você esteja sóbrio de novo;
até que você morra;
E decida que não há hora melhor para ser feliz do que AGORA MESMO...
Lembre-se:


"Felicidade é uma viagem, não um destino".

O amor é racional?

Revista Vida Simples nº 97 01/10/2010 - Por Eugênio Mussak

Provavelmente o amor é o maior de todos os sentimentos. Mas dizem que ele tem um lado lógico. Será que é possível racionalizar os atos relacionados com o amor?

Há uma descrição do cérebro humano que é bem simples e muito didática. Segundo ela, nós não teríamos um cérebro só, mas três – ainda que também pudéssemos dizer que são três partes do mesmo órgão. Essas partes têm funções diferentes, mas muito complementares. Nosso cérebro seria então uma espécie de três em um, um conjunto de estruturas que são chamadas a agir em função das diferentes situações que a vida nos oferece.

O primeiro cérebro, que foi o primeiro a surgir na evolução do homem, chama-se sistema reptiliano, porque é uma herança daqueles bichinhos simpáticos, como os crocodilos e os dinossauros. Suas funções estão inteiramente ligadas aos instintos de sobrevivência física, como comer, economizar energia, esconder-se, fugir e também gerar o impulso sexual, pois dele depende a sobrevivência da espécie.

O segundo cérebro chama-se sistema límbico, é bem mais novo que o anterior e tem sob sua jurisdição os sentimentos e as emoções. Graças a ele somos capazes de amar, odiar, sentir medo, raiva, saudade, prazer, ambição, ciúmes. Esse cadinho de sensações que nos fazem sentir bem ou mal, gozar com a vida ou sofrer por causa dela. Sem dúvida, o surgimento dessa qualidade emocional nos diferenciou de muitos animais, como os répteis, que só têm instintos de sobrevivência física. Um jacaré é incapaz de amar ou odiar, ele só quer viver. Não sabe o que está perdendo, o bobinho.

Só que o ser humano, e apenas ele – pelo menos com essa configuração –, tem o terceiro cérebro, chamado de córtex cerebral. Uma fina camada que recobre todo o órgão (córtex significa casca) e que concentra a maior quantidade de neurônios existente na natureza. E é nessa camada que se realiza o fantástico conjunto de reações químicas que convencionamos chamar de pensamento, lógica, razão. Essa é a parte que gosta de dizer que está no comando, afinal, vivemos em um mundo que valoriza a lógica.

Então o amor – esse sublime sentimento que embala nossos sonhos, acalenta nossas noites, alegra nossos dias e transforma a vida em algo que vale a pena – é função exclusiva do sistema límbico, a camada intermediária, superior aos instintos, mas inferior ao pensamento. Certo?
Errado. O amor pode começar ali, mas ultrapassa esses limites e contamina todo o cérebro, pedindo a participação de nossa parte mais primitiva, animal, e de nossa função mais desenvolvida, racional. Sem essas ajudas, o amor não se sustenta, deixa de ser um prazer e passa a incomodar como um corpo estranho.

Qual é o tipo de colaboração que o pensamento dá ao sentimento? Como é que a lógica colabora com o amor? Como todos os mortais já surfei nas ondas do amor e da paixão. Já peguei agradáveis marolas e emocionantes tubos, mas já quebrei a cara em recifes traiçoeiros. A paixão sempre me pareceu ser uma onda ótima, mas descobri que ela, em geral, tem um paredão por baixo que a gente não vê.

Já me apaixonei pela pessoa errada, sim. Por que ela era a pessoa errada? Bem, porque seus valores eram outros e porque seu estilo de vida não combinava com o meu, pelo menos não naquela fase de minha vida. A cobrança era muito grande, bem maior que minha capacidade de atender. Esse desequilíbrio deu origem a uns tombos que machucaram a alma. Só que a paixão era grande e eu levei tempo para compreender a realidade.
O sistema límbico estava podendo, mandando em tudo dentro de mim. O córtex, coitado, estava cochilando, amortecido pelo prazer narcótico da paixão. Só quando ele acordou e tomou controle da prancha é que evitei os recifes pontiagudos da decepção amorosa. A relação terminou, e foi sofrido terminar. Mas hoje, de cabeça fria, fica claro que foi a melhor solução existente. Esse é apenas um exemplo de como o sentimento, quando não é auxiliado pela razão, pode provocar mais sofrimento que felicidade.

Mas eu prefiro mesmo é falar da situação oposta, quando a razão e a emoção estão em sintonia. Aliás, lembrome de ter ouvido do psiquiatra Paulo Gaudêncio exatamente esta frase: “A felicidade acontece quando a razão e a emoção se encontram na realização de uma atividade prazerosa”. Belíssima observação do Gaudêncio, um médico que conhece a alma humana porque é um estudioso e porque é um homem sensível. Quando razão e emoção se encontram na mais agradável de todas as atividades, o amor, surge a glória.
Entretanto, o amor é um sentimento maravilhoso, mas frágil. Lygia Fagundes Telles uma vez o comparou a uma bolha de sabão, e escreveu um conto com esse título. A escritora tem razão, pense. Uma bolha de sabão é uma coisinha brilhante, belíssima, com cores que se alternam. Flutua no ar e se eleva como se estivesse em busca do infinito. Até que estoura…
E por que estoura a bolha de sabão? Porque é sensível demais, frágil demais. Muito mais leve que a realidade cotidiana, pesada e cheia de farpas cortantes. O amor é assim mesmo, e se não for conservado ao abrigo das farpas cortantes acaba por estourar mesmo.

Por isso eu gosto do substantivo feminino “intenção”, que quer significar a proposta de um ato, de um movimento deliberado – portanto racional – em direção a um objetivo prédefinido. A vida de uma pessoa é cheia de intenções, às vezes boas, às vezes más. E é quando a intenção vira ação que as coisas acontecem, as transformações de processam, e o mundo segue seu curso evolutivo, que é resultante da subtração das más intenções.

Felizmente, no geral, as boas intenções predominam, mas precisamos observá-las no particular, em sua vida ou na minha, vidas corriqueiras de pessoas que só querem ser felizes. “Em minha vida”, talvez você diga, “não há más intenções.” É provável que não, mas coloque as coisas em outra perspectiva: a falta de boas intenções tem o mesmo poder destrutivo que a existência das más intenções.
Em outras palavras, o amor não sobrevive só de sua própria força e precisa ser apoiado pela força da razão?Uma relação a dois é feita de amor, de intenção e de ação. O amor sozinho é uma bolha de sabão. A intenção sozinha é inócua. A ação sozinha pode ser destrutiva. O encontro dos três é o caldo de cultura do sucesso da relação.

Conheço pessoas que se acomodaram na conquista. “Afinal, estamos juntos porque o amor no uniu”, diz o incauto, “E ele nos manterá unidos”, completa a imprudente. Não, o amor não sustenta, quem sustenta é a felicidade que vem dele, das ações que ele provoca e das coisas práticas da vida.
Lembro que ouvi um típico macho brasileiro afirmar que “a mulher” não se importaria que ele chegasse tarde em casa, pois ela estaria ocupada tomando conta das crianças. Ao lhe perguntar quando ele tinha lhe mandado flores pela última vez, ele me olhou como se eu tivesse feito uma pergunta sobre física quântica. E o último presente? Bem, esse foi mais fácil. “No Natal”, disse, rindo.
Para ser justo com os homens, também arrepiei os cabelos do braço presenciando alguns comportamentos femininos. Vi uma morena em uma roda de bar ser “sincera” com seu companheiro na frente dos amigos, deixando claro que eles se davam bem, mas que ele não era, em absoluto, “o amor de sua vida”. Nunca havia visto uma desdeclaração de amor tão explícita. Eu teria ido embora, e sem pagar a conta.

Qual é a intenção dessas pessoas que não colocam seu companheiro como algo importante em suas vidas? Que fruto espera colher um homem de uma árvore ressequida pela indiferença? Por que continua uma mulher ao lado de um homem a quem não dedica sequer suas melhores palavras?

O que pode fazer a razão em favor do amor é providenciar uma coleção de pequenos atos que, somados, conferem valor à relação e garantem sua longevidade. Não há nada mais sem graça que uma relação que se acomodou. Chega o fim, e é triste constatar que a imensa maioria dos casamentos desfeitos é vítima da rotina, mas esta não tem nada a ver com coisas que temos que fazer todos os dias, como levantar cedo, ir trabalhar, buscar as crianças na escola ou comprar pão na padaria da esquina. Essas são ações corriqueiras, normais, necessárias.

A rotina que mata o amor é a rotina do que não se faz. Da declaração de amor que deixa de ser feita, do elogio economizado à roupa simples do dia a dia, do sorriso sonegado ao acordar, da palavra de carinho roubada à despedida, da comemoração não feita em qualquer conquista, do boa noite seco, sem um beijo, antes de dormir.
O amor não se sustenta sem a intenção de amar e sem a ação pequena, mas constante, de alegrar o outro com sua presença. Acredito que o amor é uma grandeza que não se sustenta com o tempo. Ou aumenta ou diminui.

 Qual é, afinal, sua intenção?

sábado, 18 de dezembro de 2010

Viver é Recriar - Se

Lya Luft
O mundo em si não tem sentido sem o
 nosso olhar que lhe atribui
identidade, sem o nosso pensamento
que lhe confere alguma ordem.
 Viver, como talvez morrer,
 é recriar-se a cada momento. 
 Arte e artifício,
exercício e invenção no espelho posto à nossa frente ao nascermos
 
Algumas visões serão miragens:
 ilhas de algas flutuantes que nos farão afundar.
 Outras pendem em galhos altos
 demais para a nossa tímida
esperança.
 Outras ainda rebrilham,
 mas a gente não percebe - ou não
acredita.
 A vida não está aí apenas para
ser suportada ou vivida,
 mas elaborada.
 
Eventualmente reprogramada.
 Conscientemente executada.
Não é preciso realizar nada de espetacular.
Mas que o mínimo seja o máximo que a gente conseguiu fazer consigo mesmo

sexta-feira, 17 de dezembro de 2010

O PERMANENTE E O PROVISÓRIO

Por Martha Medeiros

O casamento é permanente, o namoro é provisório.
O amor é permanente, a paixão é provisória.
Uma profissão é permanente, um emprego é provisório.
Um endereço é permanente, uma estada é provisória.
A arte é permanente, a tendência é provisória.
De acordo? Nem eu.

Um casamento que dura 20 anos é provisório. Não somos repetições de nós mesmos, a cada instante somos surpreendidos por novos pensamentos que nos chegam através da leitura, do cinema, da meditação. O que eu fui ontem, anteontem, já é memória. Escada vencida degrau por degrau, mas o que eu sou neste momento é o que conta, minhas decisões valem pra agora, hoje é o meu dia, nenhum outro.

Amor permanente... como a gente se agarra nesta ilusão. Pois se nem o amor pela gente mesmo resiste tanto tempo sem umas reavaliações. Por isso nos transformamos, temos sede de aprender, de nos melhorar, de deixar pra trás nossos imensuráveis erros, nossos achaques, nossos preconceitos, tudo o que fizemos achando que era certo e hoje condenamos. O amor se infiltra dentro da nós, mas seguem todos em movimento: você, o amor da sua vida e o que vocês sentem. Tudo pulsando independentemente, e passíveis de se desgarrar um do outro.

Um endereço não é pra sempre, uma profissão pode ser jogada pela janela, a amizade é fortíssima até encontrar uma desilusão ainda mais forte, a arte passa por ciclos, e se tudo isso é soberano e tem valor supremo, é porque hoje acreditamos nisso, hoje somos superiores ao passado e ao futuro, agora é que nossa crença se estabiliza, a necessidade se manifesta, a vontade se impõe – até que o tempo vire.

Faço menos planos e cultivo menos recordações. Não guardo muitos papéis, nem adianto muito o serviço. Movimento-me num espaço cujo tamanho me serve, alcanço seus limites com as mãos, é nele que me instalo e vivo com a integridade possível.

Canso menos, me divirto mais, e não perco a fé por constatar o óbvio: tudo é provisório, inclusive nós.

Terapia do amor

Por Martha Medeiros

O filme Terapia do Amor conta a história de uma mulher de 37 anos que se envolve com um garotão de 23, e a coisa funciona às maravilhas, é claro, porque um homem e uma mulher a fim um do outro é sempre uma combinação explosiva, não importa a idade. Mas como em todo conto-de-fadas que se preze, há a bruxa, no caso a mãe do guri, que não gosta nadinha da idéia, mesmo sendo uma psicanalista de cabeça feita - aliás, psicanalista da própria nora, descobre ela tarde demais. Deste "triângulo" surgem as tiradas engraçadas (Meryl Streep dando show, como sempre) e também a partezinha do filme que faz pensar.

Pensei. Mas não na questão da diferença de idade, tão comum nas relações atuais. Se antes era natural homens mais velhos se relacionarem com ninfetas, agora as mulheres mais maduras (não existe mulher velha antes dos cem) se relacionam com caras mais jovens e está tudo certo, até porque eles também tiram proveito. A troco de quê gastar energia com uma garotinha cheia de inseguranças? Mais vale uma quarentona que perdeu a chatice natural de toda mulher e se tornou serena, independente, auto-confiante e bem-humorada. São mais relaxadas, garantem o próprio sustento e não perdem tempo fazendo drama à toa. Qual o homem que não vai querer uma mulher assim? Se você acha que este parágrafo foi uma defesa em causa própria e a de todo o mulherio que não tem mais 20 anos, acertou, parabéns, pegue seu prêmio na saída.

Sem brincadeira: o mais interessante do filme, a meu ver, foi mostrar que é difícil viver um relacionamento sabendo que ele vai terminar ali adiante, mas nunca será tempo perdido. Fomos todos criados para o "pra sempre", como se o objetivo de todos os casais ainda fosse o de constituir família. Quando é, convém pensar a longo prazo. Só que hoje muitas pessoas se relacionam sem nenhum outro objetivo que não seja o de estar feliz naquele exato momento, mesmo sabendo que as diferenças de religião, idade, condição social ou ideologia poderão encurtar a história (poderão, não quer dizer que irão). Há cada vez menos iludidos. Poucos são aqueles que atravessam uma vida tendo um único amor, então, vale o que está sendo vivido, o momento presente. "Dar certo" não está mais relacionado ao ponto de chegada, mas ao durante.

A personagem de Meryl Streep, depois de ter todos os chiliques normais de uma mãe que acha que o filhote está perdendo em vez de estar ganhando com a experiência, organiza melhor seus pensamentos e diz, ao final do filme, uma coisa que pode parecer fria para ouvidos mais sensíveis, mas é um convite a cair na real: "Podemos amar, aprender muito com este amor e partir pra outra". O compromisso com a eternidade é opcional e ninguém merece ser chamado de frívolo por não fazer planos de aposentar-se juntos.

Já escrevi sobre isso em outras ocasiões e sempre acham que estou descrevendo o apocalipse. Ao contrário, triste é passar a vida falando mal do casamento - estando casado - e colecionando casos extraconjugais e mentiras dolorosas. Melhor legitimar os amores mais leves, menos fóbicos, comprometidos com os sentimentos e não com as convenções. Estes serão os melhores amores, que poderão, quem sabe, até durar para sempre, o que será uma agradável surpresa, jamais uma condenação.

sexta-feira, 10 de dezembro de 2010

PENSAR É TRANSGREDIR

Por Lya Luft

Não lembro em que momento percebi que viver deveria ser uma permanente reinvenção de nós mesmos — para não morrermos soterrados na poeira da banalidade embora pareça que ainda estamos vivos.

Mas compreendi, num lampejo: então é isso, então é assim. Apesar dos medos, convém não ser demais fútil nem demais acomodada. Algumas vezes é preciso pegar o touro pelos chifres, mergulhar para depois ver o que acontece: porque a vida não tem de ser sorvida como uma taça que se esvazia, mas como o jarro que se renova a cada gole bebido.

Para reinventar-se é preciso pensar: isso aprendi muito cedo.

Apalpar, no nevoeiro de quem somos, algo que pareça uma essência: isso, mais ou menos, sou eu. Isso é o que eu queria ser, acredito ser, quero me tornar ou já fui. Muita inquietação por baixo das águas do cotidiano. Mais cômodo seria ficar com o travesseiro sobre a cabeça e adotar o lema reconfortante: "Parar pra pensar, nem pensar!"
O problema é que quando menos se espera ele chega, o sorrateiro pensamento que nos faz parar. Pode ser no meio do shopping, no trânsito, na frente da tevê ou do computador. Simplesmente escovando os dentes. Ou na hora da droga, do sexo sem afeto, do desafeto, do rancor, da lamúria, da hesitação e da resignação.
Sem ter programado, a gente pára pra pensar.
Pode ser um susto: como espiar de um berçário confortável para um corredor com mil possibilidades. Cada porta, uma escolha. Muitas vão se abrir para um nada ou para algum absurdo. Outras, para um jardim de promessas. Alguma, para a noite além da cerca. Hora de tirar os disfarces, aposentar as máscaras e reavaliar: reavaliar-se.
Pensar pede audácia, pois refletir é transgredir a ordem do superficial que nos pressiona tanto.
Somos demasiado frívolos: buscamos o atordoamento das mil distrações, corremos de um lado a outro achando que somos grandes cumpridores de tarefas. Quando o primeiro dever seria de vez em quando parar e analisar: quem a gente é, o que fazemos com a nossa vida, o tempo, os amores. E com as obrigações também, é claro, pois não temos sempre cinco anos de idade, quando a prioridade absoluta é dormir abraçado no urso de pelúcia e prosseguir, no sono, o sonho que afinal nessa idade ainda é a vida.
Mas pensar não é apenas a ameaça de enfrentar a alma no espelho: é sair para as varandas de si mesmo e olhar em torno, e quem sabe finalmente respirar.
Compreender: somos inquilinos de algo bem maior do que o nosso pequeno segredo individual. É o poderoso ciclo da existência. Nele todos os desastres e toda a beleza têm significado como fases de um processo.
Se nos escondermos num canto escuro abafando nossos questionamentos, não escutaremos o rumor do vento nas árvores do mundo. Nem compreenderemos que o prato das inevitáveis perdas pode pesar menos do que o dos possíveis ganhos.
Os ganhos ou os danos dependem da perspectiva e possibilidades de quem vai tecendo a sua história. O mundo em si não tem sentido sem o nosso olhar que lhe atribui identidade, sem o nosso pensamento que lhe confere alguma ordem.
Viver, como talvez morrer, é recriar-se: a vida não está aí apenas para ser suportada nem vivida, mas elaborada. Eventualmente reprogramada. Conscientemente executada. Muitas vezes, ousada.
Parece fácil: "escrever a respeito das coisas é fácil", já me disseram. Eu sei. Mas não é preciso realizar nada de espetacular, nem desejar nada excepcional. Não é preciso nem mesmo ser brilhante, importante, admirado.
Para viver de verdade, pensando e repensando a existência, para que ela valha a pena, é preciso ser amado; e amar; e amar-se. Ter esperança; qualquer esperança.
Questionar o que nos é imposto, sem rebeldias insensatas mas sem demasiada sensatez. Saborear o bom, mas aqui e ali enfrentar o ruim. Suportar sem se submeter, aceitar sem se humilhar, entregar-se sem renunciar a si mesmo e à possível dignidade.
Sonhar, porque se desistimos disso apaga-se a última claridade e nada mais valerá a pena. Escapar, na liberdade do pensamento, desse espírito de manada que trabalha obstinadamente para nos enquadrar, seja lá no que for.
E que o mínimo que a gente faça seja, a cada momento, o melhor que afinal se conseguiu fazer.

segunda-feira, 6 de dezembro de 2010

FITA MÉTRICA DO AMOR

Por Martha Medeiros

Como se mede uma pessoa? Os tamanhos variam conforme o grau de envolvimento. Ela é enorme pra você quando fala do que leu e viveu, quando trata você com carinho e respeito, quando olha nos olhos e sorri destravado. É pequena pra você quando só pensa em si mesmo, quando se comporta de uma maneira pouco gentil, quando fracassa justamente no momento em que teria que demonstrar o que há de mais importante entre duas pessoas: a amizade.

Uma pessoa é gigante pra você quando se interessa pela sua vida, quando busca alternativas para o seu crescimento, quando sonha junto. É pequena quando desvia do assunto.

Uma pessoa é grande quando perdoa, quando compreende, quando se coloca no lugar do outro, quando age não de acordo com o que esperam dela, mas de acordo com o que espera de si mesma. Uma pessoa é pequena quando se deixa reger por comportamentos clichês.

Uma mesma pessoa pode aparentar grandeza ou miudeza dentro de um relacionamento, pode crescer ou decrescer num espaço de poucas semanas: será ela que mudou ou será que o amor é traiçoeiro nas suas medições? Uma decepção pode diminuir o tamanho de um amor que parecia ser grande. Uma ausência pode aumentar o tamanho de um amor que parecia ser ínfimo.

É difícil conviver com esta elasticidade: as pessoas se agigantam e se encolhem aos nossos olhos. Nosso julgamento é feito não através de centímetros e metros, mas de ações e reações, de expectativas e frustrações. Uma pessoa é única ao estender a mão, e ao recolhê-la inesperadamente, se torna mais uma. O egoísmo unifica os insignificantes.

Não é a altura, nem o peso, nem os músculos que tornam uma pessoa grande. É a sua sensibilidade sem tamanho.

domingo, 5 de dezembro de 2010

Promessas de Casamento

Por Martha Medeiros

Em maio de 98, escrevi um texto em que afirmava que achava bonito o ritual do casamento a igreja, com seus vestidos brancos e tapetes vermelhos, mas que a única coisa que me desagradava era o sermão do padre. "Promete ser fiel na alegria e na tristeza, na saúde e na doença, amando-lhe e respeitando-lhe até que a morte os separe?" Acho simplista e um pouco fora da realidade. Dou aqui novas sugestões de sermões:

- Promete não deixar a paixão fazer de você uma pessoa controladora, e sim respeitar a individualidade do seu amado, lembrando sempre que ele não pertence a você e que está ao seu lado por livre e espontânea vontade?

- Promete saber ser amiga(o) e ser amante, sabendo exatamente quando devem entrar em cena uma e outra, sem que isso lhe transforme numa pessoa de dupla identidade ou numa pessoa menos romântica?

- Promete fazer da passagem dos anos uma via de amadurecimento e não uma via de cobranças por sonhos idealizados que não chegaram a se concretizar?

- Promete sentir prazer de estar com a pessoa que você escolheu e ser feliz ao lado dela pelo simples fato de ela ser a pessoa que melhor conhece você e portanto a mais bem preparada para lhe ajudar, assim como você a ela?
- Promete se deixar conhecer?
- Promete que seguirá sendo uma pessoa gentil, carinhosa e educada, que não usará a rotina como desculpa para sua falta de humor?
- Promete que fará sexo sem pudores, que fará filhos por amor e por vontade, e não porque é o que esperam de você, e que os educará para serem independentes e bem informados sobre a realidade que os aguarda?
- Promete que não falará mal da pessoa com quem casou só para arrancar risadas dos outros?
- Promete que a palavra liberdade seguirá tendo a mesma importância que sempre teve na sua vida, que você saberá responsabilizar-se por si mesmo sem ficar escravizado pelo outro e que saberá lidar com sua própria solidão, que casamento algum elimina?
- Promete que será tão você mesmo quanto era minutos antes de entrar na igreja?

Sendo assim, declaro-os muito mais que marido e mulher: declaro-os maduros.

sexta-feira, 3 de dezembro de 2010

CASAMENTO ABERTO

Por Marta Medeiros


Andou circulando pela internet um texto creditado a Danielle Mitterrand, viúva do ex-presidente francês François Mitterrand. Pelo teor, acredito que seja mesmo de sua autoria. Quando permitiu que a amante e a filha que ele teve fora do casamento comparecessem aos funerais, Danielle comprou uma briga com a ala mais conservadora da sociedade francesa. Agora está se defendendo com uma reflexão que serve para todos nós.


É sabido que a instituição casamento vem se descredibilizando com o passar do tempo. Hoje, uma relação que dura vinte anos já é candidata a entrar para o Guinness. Li outro dia uma pesquisa sobre os casais mais "divorciáveis" da atualidade. A tal Paris Hilton era a mais cotada para se separar no primeiro ano de matrimônio - erraram: nem chegou a haver casamento. E fora do mundo das celebridades não é muito diferente. Os pombinhos estão no altar, e os amigos, na igreja, já estão fazendo suas apostas para a duração do enlace. Todo mundo quer casar, adora a idéia, mas poucos ainda acreditam no felizes para sempre, e não porque sejam cínicos, mas porque conhecem bem o contrato que estão assinando: com exigência de exclusividade vitalícia, ou seja, ninguém entra, ninguém sai. Difícil achar que isso possa dar certo nos dias atuais.


O casamento vai acabar? Nunca, mas vai continuar a fazer muita gente sofrer se não entrarem cláusulas novas nesse contrato e se as cabeças não se arejarem. Danielle Mitterrand diz o seguinte: "Achar que somos feitos para um único e fiel amor é hipocrisia, conformismo. É preciso admitir docemente que um ser humano é capaz de amar apaixonadamente alguém e depois, com o passar dos anos, amar de forma diferente." E termina citando sua conterrânea, Simone de Beauvoir: "Temos amores necessários e amores contingentes ao longo da vida".
Estamos falando de casamento aberto, sim, mas não desse casamento escancarado e vulgar, em que todos se expõem, se machucam e acabam ainda mais frustrados. Casamento aberto é outra coisa, e pode inclusive ser monogâmico e muito feliz. A abertura é mental, não precisa ser sexual. É entender que com possessão não se chegará muito longe. É amar o outro nas suas fragilidades e incertezas. É aceitar que uma união é para trazer alegria e cumplicidade, e não sufocamento e repressão. É ter noção de que a cada idade estamos um pouquinho
transformados, com anseios e expectativas bem diferentes dos que tínhamos quando casamos, e quem nos ama de verdade vai procurar entender isso, e não lutar contra. Sendo aberto nesse sentido, o casal construirá uma relação que seja plena e feliz para eles mesmos, e não para a torcida. E o que eles sofrerem, aceitarem, negociarem ou rejeitarem terá como único intento o crescimento de ambos como seres individuais que são.


Enquanto não renovarmos nossa idéia de romantismo, continuaremos a bagunçar aquilo que foi feito apenas para dar prazer: duas pessoas vivendo juntas. Eu não conheço nada mais difícil, mas também nada mais bonito. E a beleza nunca está nas mesquinharias e infantilidades. A beleza está sempre um degrau acima. 16 de outubro de 2005


Casamento é um Estado de Espírito



Pra começar, casamento não deveria ser um divisor de águas na vida de uma pessoa, com uma data escolhida para separar definitivamente o antes do depois.


Em vez de decidir casar, deveríamos permitir que o casamento acontecesse espontaneamente, sem que a gente nem percebesse. Comigo, sortuda que sou, aconteceu assim. Estávamos juntos havia um tempão e cada um morava no seu apartamento. Aos poucos, a cumplicidade foi aumentando, nossas roupas e discos começaram a se misturar, já não queríamos dormir separados. Não fazíamos muitos planos para o futuro, curtíamos a companhia um do outro serenamente, sem pactos nem juras de amor eterno, até que um belo dia nos demos conta de que já estávamos casados, casadíssimos, a questão era oficializar ou não. Oficializamos, assinamos os papéis, e o que mudou a partir daí?

Nada. Qual é a data do nosso casamento? 13 de janeiro, 30 de março, 23 de outubro, 8 de dezembro... escolha você. Em cada dia dos nossos quatro anos de namoro a gente casou um pouquinho. O que equivale a dizer que começamos a casar no dia em que nos conhecemos: não foi um crime premeditado.

Casamento é grude? Só se o casal ambiciona o ódio mútuo. Casamento é a união de duas pessoas que têm afinidades, que gostam muito de conversar uma com a outra, de transar uma com a outra e que resolvem morar juntas porque é mais econômico e porque facilita na hora de ter filhos, que é uma aventura deliciosa a ser compartilhada. Se ambos estiverem de acordo quanto a isso, aceitarão com naturalidade que cada um tenha os próprios amigos, os próprios passatempos, suas viagens, seu trabalho, enfim, que sejam donos de uma vida individualizada e inteira, e não mutilada. Leva-se um tempo até descobrir que esse é um arranjo que funciona. Pena que, antes que o casal amadureça e chegue a esse ponto, muitos desistem por puro apego às convenções.
Você deve estar pensando: muito bem, e agora? Ela vai continuar enrolando ou vai tocar naquele ponto nevrálgico que implode a maioria das relações?

Não, ela não vai continuar enrolando. É hora de falar na dolorosa. A questão da fidelidade.
Se Jennifer Aniston continuar casada com Brad Pitt por mais dez anos, até ela, com aquele monumento em casa, vai começar a bocejar e a olhar impaciente pela janela. Não porque Brad Pitt tenha dentes feios e espinhas no rosto (foi o Rubens Ewald que disse isso; pra mim Brad segue perfeito). A razão será outra: amor e sexo não são da mesma família. O amor é de família nobre e tradicional, enquanto o sexo vem da periferia e é chegado numa promiscuidade. Nem os sentimentos mais elevados por nosso parceiro conseguem evitar que tenhamos desejos secretos e fora de hora. Desejar é humano, meritíssimo, não nos condene. Estranho seria se a gente não tivesse nenhuma fantasia, nenhuma excitação pelo que acontece do lado de fora da cela.

Homens sentem vontade de transar com outras mulheres, e mulheres sentem vontade de transar com outros homens pelas mais diversas razões: para testar seu poder de sedução, para dar um up na auto-estima, para recuperar a adolescência perdida ou porque se apaixonaram por outra pessoa inadvertidamente - arrisco até a dizer: inocentemente. Ninguém tem controle absoluto sobre si mesmo, pode acontecer com qualquer um. E aí, como se resolve?

Quem é temente a Deus reprime. Quem é temente aos olhos dos vizinhos reprime. Quem é temente a si mesmo reprime. Mas quem não quer passar o resto da vida privando-se de sonhar, de se encantar, de namorar outra vez encara e assume os riscos, que não são poucos. Muitos acabam se separando, mesmo tendo um casamento que era satisfatório. No entanto, a tal "pulada de cerca" às vezes não gera maiores conflitos internos, é apenas uma necessidade paralela.


Não é assunto fácil, tampouco é novo. É um problema antigo e cabeludo. Envolve religião e seu subproduto: culpa. Sentimos culpa por tudo. Culpa por sermos avançadas demais, medrosas demais, galinhas demais, santinhas demais. Culpa pela nossa libido, pelas nossas fraquezas, pela nossa coragem. Culpa por estarmos mentindo, omitindo, enganando. Por ter permitido que o casamento chegasse a esse ponto de fragilidade - ou de segurança extrema, acreditando que tudo será perdoado e compreendido.


Casamento é um compromisso sério, mas não deveria significar prisão, submissão, anulação, obediência e tudo mais que caracteriza uma relação tirânica. Casamento deve significar amizade, sexo, respeito, diversão e companhia. Casamento tem que ser alegre, tem que ter sintonia, liberdade e muito jogo de cintura. Casamento não é brincadeira de criança, mas tem que ser leve, e é imprescindível que haja maturidade e - atenção - inteligência! A burrice é inimiga das relações, ela é que permite o surgimento de mesquinharias, preconceitos, implicâncias e ciúmes doentios. Casamento tem que ser aberto, não necessariamente no sentido sexual - isso é negociado caso a caso -, mas aberto para a renovação, para a conversa franca, para as necessidades de cada um, para a intimidade que vai além dos corpos, intimidade de almas, intimidade que permite a gente enxergar o outro, aceitar o outro e viver de maneira menos repetitiva e convencional. Cada casamento exige uma fórmula própria, cada casal inventa a sua, mas de uma coisa não se pode prescindir: da flexibilidade.

Parece facílimo, mas é um deus-nos-acuda. De tudo o que foi dito, a única conclusão a que chego é que os casamentos seguirão desmoronando se não houver uma compreensão do assunto que ultrapasse o romantismo. Amor é fundamental, mas não basta. É preciso um não-sei-quê que a gente não explica, mas sente. Algo que está no ar, no olhar, e que dispensa racionalizações.

quinta-feira, 2 de dezembro de 2010

Apesar do Medo

texto Elisa Correa

Faz cinco noites que não durmo. Ou durmo assim meio sem dormir, sono interrompido, olhos abertos às 4 da manhã. Tenho sentido a cabeça muito cheia de coisas, perturbada por uma sucessão de histórias do passado e sonhos para o futuro que mudam de lugar como num caleidoscópio. Meu estômago queima, mas não sinto fome, meu pescoço dói sem qualquer movimento. Sinto falta de energia, como se nas minhas veias corresse uma mistura de água com açúcar. Tudo isso porque vou mudar. De cidade, de trabalho, de contexto. Deixar para trás rostos conhecidos, abraços garantidos, portas para bater. Estou com medo do que me espera e do que não me espera também. De ir e querer voltar, de partir e não chegar, de tentar e não conseguir.

Medo todo mundo tem. Porque o medo é um sentimento natural de quem está vivo e tem a função de alerta, de avisar o organismo de um perigo ou ameaça e provocar reações de proteção. O problema é que, diferentemente dos animais, temos a consciência de que um dia iremos morrer.

Do medo da morte derivam muitos medos que nos acompanham desde sempre e os que habitam nossa alma nos dias de hoje. Há quem diga que a nossa é a Era dos Temores. Temos medo de tudo: do cigarro, da gordura trans, do aquecimento global. Das notícias ruins, de falar com um estranho, da crise mundial. De ser assaltado, de perder o emprego e até mesmo de ser feliz. Como seria impossível escrever sobre todos os medos, escolhemos olhar mais de perto aqueles que são alimentados pelas inseguranças e ansiedades contemporâneas. Não vamos falar aqui de medo de barata, de elevador ou de avião. Nem dos eternos medos da velhice e da solidão. Talvez você tenha outros medos, assim como eu. Mas para todos eles o remédio é um só: enfrentar e aprender que o importante não é deixar de ter medo, mas sim tocar a vida apesar dos medos.

Medo do fracasso Se hoje um dos nossos maiores medos é o de fracassar, é porque uma das nossas maiores buscas é o sucesso. Passamos a vida determinados a conquistar coisas, pessoas e posições que nos levem ao sucesso, ligado, na nossa sociedade, à ideia de felicidade e de rea lização. O problema é que hoje, para ser bem-sucedido, é preciso superar níveis de exigência sempre mais altos. O mundo nos cobra competência, eficiência, excelência. E um espírito competidor: todos são seus concorrentes quando disputam um lugar ao sol com você. Quer uma vaga num concurso público? Então prepare-se para ser o melhor e deixar para trás milhares de outros candidatos. Seu sonho é trabalhar numa organização internacional? Pois trate de ter no currículo fl uência em inglês, francês, árabe e mandarim e ainda um título de mestre e outro de doutor. “Nossa cultura doutrinouse com a ideia de que nosso sucesso ou nosso fracasso está em nossas próprias mãos. O efeito dessa postura é carregar a pessoa com o equivalente moderno da culpa: o medo do fracasso”, escreve o criador da análise bionergética, Alexander Lowen, no livro Medo da Vida.

E essa parece ser a fórmula perfeita para muita gente entrar em parafuso. No capítulo “A sabedoria do fracasso”, Lowen afirma que
nossa determinação em atingir recordes acaba sempre em colapso. Ficamos cansados por causa do esforço contínuo para alcançar objetivos inatingíveis e ficamos deprimidos porque fracassamos. Calma: você não precisa achar que é um ser inferior só porque tem medo de não conseguir. Com toda essa pressão e com as coisas no mundo postas desse jeito, é normal sentir medo porque não existe mesmo lugar para todos. Para o psiquiatra Flávio Gikovate, esse medo sociológico do fracasso é justificável. “Já o medo psicológico é quando a pessoa tem pouca tolerância à frustração e às adversidades; quando o medo de fracassar impede a ação, paralisa. A pessoa não arrisca. Quem tem medo do fracasso, medo de se frustrar, tem é medo de sofrer. E esse medo tem que ser enfrentado, porque quem não tenta, quem não experimenta, já fracassou.”

Medo dos outros Resolvi pegar um táxi para conversar com um motorista sobre o medo dos outros. Como pode alguém abrir, toda noite, seu carro para um desconhecido numa cidade como São Paulo? Encontrei alguém com mais medo de se jogar no mundo que de abrir as portas do táxi. Lau Gasparotto é um taxista de 45 anos que não tem medo de passageiro e sim medo de casar. Em 12 anos de profissão nunca foi assaltado, ao contrário dos muitos colegas que já perderam a conta das vezes que sentiram uma arma encostada na cabeça. Para diminuir os riscos, Lau começou a trabalhar com o radiotáxi, porque tem ao menos uma referência do passageiro que vai transportar. E para diminuir os riscos de sofrer de amor? Lau decidiu que não vai mais casar.

Quem tem medo pensa em muros. Não importa se de concreto, para proteger nossas moradas, ou invisíveis, uma barreira entre nós e os outros. Com medo da violência abandonamos as ruas e procuramos abrigo em condomínios, apartamentos, shopping centers, carros blindados.
Com medo do que o outro possa fazer, adotamos uma postura autodefensiva, desconfiamos antes de confiar, andamos para trás em vez de tentar
. Para Flávio Gikovate, é normal sentir medo dos outros nos dias de hoje, apesar de esse ser um medo que existe há muito tempo. Mas se lá no passado a divisão entre amigos e inimigos era mais definida, feita por critérios como raça, religião e pátria, hoje a confiabilidade depende da percepção que temos do caráter das pessoas. “Se antes confiávamos nas pessoas até que se provasse o contrário, hoje desconfiamos sempre. E com razão. As relações de amizade estão muito complicadas, é difícil separar o que é amizade do que é interesse”, diz Gikovate.

Mas o que fazer então: evitar as calçadas e os encontros? Fechar as portas do coração? Bem, quem já se queimou ao colocar a mão no fogo evita chegar perto de um fogão de novo. Não tem jeito, as experiências passadas estruturam nosso comportamento para garantir a sobrevivência.
Quem não consegue estabelecer relacionamentos com ninguém, porque sente medo da rejeição, na verdade queria muito estar com os outros, mas se afasta quando alguém se aproxima. E precisa de ajuda.

Para aqueles que acham que seus temores andam crescendo quase a ponto de paralisar, é preciso desenvolver a coragem, essa força racional capaz de ultrapassar o medo. “Mas não vencê-lo”, lembra Gikovate. “
A gente não vai sem medo, a gente vai apesar do medo.”

Medo de crescer Às vezes a gente tem medo até daquilo que mais quer. A engenheira Bianca Ranzi passou por isso quando marcou a data do casamento, em 2004. Foi instantâneo: dia marcado, pânico instalado. “O mais absurdo é que a gente já morava junto, ou seja, já estávamos casados e estava tudo bem. Mas marcar o casamento me deu a impressão de que a partir dali seria vida de gente grande.” Nas duas semanas seguintes, a coisa ficou preta. “Fiquei superfria, acordava no meio da noite e olhava para ele pensando: será que é isso mesmo que eu quero? Passar o resto da minha vida com essa pessoa?” Até que não deu mais. Bianca chamou o quase marido para conversar e abriu o jogo. Enquanto dizia que estava com medo e não sabia se era aquilo mesmo que queria, ele escutava quieto. Quando ela acabou de falar, ele começou a rir. “Ele foi maior que o meu medo, confiou em mim, em nós e em tudo que já tínhamos vivido. Isso me fez cair na real, percebi que o verdadeiro casamento a gente já estava vivendo e que eu estava muito feliz.”

O que aconteceu a Bianca não é caso raro. O medo de crescer parece ser um mal difuso entre nós. Pense em si e em alguns amigos.
Quantas vezes vocês não amarelaram na hora de definir uma situação, não deram um passo para trás no momento de dar aquele passo à frente? Como se fosse possível ir adiando a hora de se responsabilizar de verdade por aquilo que nos acontece, pelas escolhas que fazemos na vida. A gente quer porque quer casar, mas fica morrendo de medo dos compromissos que vêm com o casamento; queremos ter aquele emprego, mas não suportamos a parte ruim que vem junto com ele. Quando esse vai-não-vai fica sério, ganha até um nome: síndrome de Peter Pan. Adultos que sofrem desse mal se recusam a crescer, insistem em viver na Terra do Nunca e querem levar a vida simplesmente numa boa, sem encarar os problemas e as responsabilidades.

Medo de mudanca Como se explica o medo do novo numa sociedade que cultua as novidades? Por que tanta gente reluta em mudar mesmo quando tudo está dando errado. “Medo de mudança é um medo saudável, faz parte da vida. A pessoa parte de uma situação conhecida, que domina, para uma situação nova, desconhecida. Parte da segurança para a insegurança, e aí pinta a angústia e o medo”, diz a psicóloga Cristina Werner. E para esse tipo de medo Cristina receita o melhor dos remédios: “Só com o tempo a pessoa vai se adaptar. O que é novo hoje não vai ser mais daqui a um mês”. Viu? Só mudando para o medo passar.

Mas, se com o tempo tudo se resolve, por que não mudar de cidade, de estado civil, de corte de cabelo? Por que não correr o risco de largar o emprego para correr atrás do sonho?
Porque, mesmo que o mundo lá fora seja incerto e instável, as pessoas ainda buscam estabilidade, certezas e definições. As pessoas não querem mudar porque se acomodam.
“A gente se acostuma para não se ralar na aspereza, para preservar a pele. Se acostuma para evitar feridas, sangramentos, para esquivar- se de faca e baioneta, para poupar o peito. A gente se acostuma para poupar a vida. Que aos poucos se gasta, e que, gasta de tanto acostumar, se perde de si mesma.” Depois de ler as palavras da escritora Marina Colasanti, tiradas do livro Eu Sei, mas não Devia, procure refletir:
você tem mais medo de mudar ou de se acostumar?

Medo do futuro O que é o futuro? Um lugar que não existe. “O futuro você pode pintar de colorido ou de preto. Pode ser atraente ou pode apavorar”, diz Gikovate. Mas como caminhar rumo ao desconhecido? Como olhar para o mundo e não ter medo do que pode acontecer? Será que vou estar empregada no mês que vem? Será que vamos ter filhos juntos? É difícil viver sem saber do amanhã. A gente tenta de todo jeito controlar o incontrolável, administrar o inadmi nistrável: há quem planeje passo a passo o próprio futuro, há quem procure os serviços de adivinhos e tarólogos para dar uma espiadinha no que está por vir. Porque é a incerteza que nos dá medo.

“Não existe medo sem incerteza: se tivermos a certeza absoluta de um mal futuro, já não se trata mais de medo, mas de desespero. Ora, a ideia da morte tem isso de particular, que é misturar uma certeza absoluta com uma incerteza também absoluta. É totalmente seguro que um dia morrerei, e absolutamente incerto quando (e onde? e como?)”, diz Francis Wolff, que participa do livro Ensaios sobre o Medo.

Bem, certezas o futuro nunca vai nos dar. Por isso talvez ajude um pouco de filosofia. Em Aprender a Viver, o filósofo francês Luc Ferry lembra que “os filosófos gregos pensavam no passado e no futuro como dois males que pesam sobre a vida humana, dois centros de todas as angústias que vêm estragar a única e exclusiva dimensão da existência que vale a pena ser vivida, simplesmente porque é a única real: a do instante presente”.

Para enfrentar meus medos do futuro, aqueles que contei no início desta matéria, e fazer a mudança que minha vida realmente pedia, usei a incrível força da esperança
. Se vou ficar ou voltar, conseguir ou fracassar, hoje não importa. Eu acredito para poder seguir em frente. Se amanhã não der certo, paciência. Depois de amanhã pode dar.
Livros
Aprender a Viver – Filosofia para os Novos Tempos, Luc Ferry, ObjetivaDá para Ser Feliz... Apesar do Medo, Flavio Gikovate, MG Editores Medo da Vida, Alexander Lowen, Summus Ensaios sobre o Medo, Adauto Novaes, Senac

quarta-feira, 1 de dezembro de 2010

O poder do diálogo

Revista Vida Simples nº 91 01/04/2010 - Por Eugênio Mussak

Tenho observado que as pessoas estão perdendo a habilidade para conversar. Será que o diálogo, no mundo atual, tão veloz, perdeu a importância?

Depois de muitos anos, reencontrei a Roberta. Amiga de primeira hora na minha chegada a São Paulo, há mais de dez anos, ela e seu marido Claudio foram importantes para me ajudar a perceber que eu poderia criar relações e raízes nesta cidade. Com o tempo fomos perdendo contato, à medida que nossos trabalhos foram ganhando dimensão e espaço, mas ficou aquela sensação gostosa da amizade e do carinho, revelados pelas lembranças de muitas conversas. Ambos eram bons de papo.

– E aí, Roberta, quanto tempo, não é mesmo? Como é que vai a vida? E o Claudio, como está? – disparei, perguntando várias coisas ao mesmo tempo, marca registrada dos encontros após separações longas.
– Eu vou bem, trabalhando muito, terminei o mestrado – e emendou uma explicação sobre sua dissertação. Eu sempre a tive na conta de uma pessoa muito inteligente e focada; não tinha dúvidas sobre seu sucesso acadêmico. Ela falava com entusiasmo de suas atividades, mas nenhuma palavra sobre sua vida pessoal, seu casamento.
– Parabéns, menina, eu sabia que você iria para o topo. Mas, e o Claudio, ainda está na mesma empresa? Continua jogando bola?
– Pra dizer a verdade, não sei o que ele tem feito. Estamos separados há mais de um ano. Ninguém te contou? Não, ninguém havia me contado, até porque não tínhamos muitos amigos em comum. Mas aquela notícia teve em mim um efeito estranho, foi como se alguém me contasse da queda de uma instituição. Eu considerava a relação deles muito boa, um exemplo.
– Puxa, que pena. Mas o que aconteceu? Vocês sempre foram tão unidos, ou pelo menos pareciam ser.
– Não sei bem, só posso te dizer que, com o tempo, as coisas foram mudando, até que sentimos que não tínhamos mais diálogo. Enquanto nós conversávamos sobre nossos planos e dilemas pessoais, a coisa ia bem. Quando paramos de falar, de abrir o peito, de juntar os corações, o caldo desandou. Preferimos nos separar antes que acabasse o respeito, já que o amor parece que tinha ido embora. Eu também acho que foi uma pena, mas posso te dizer que foi bom enquanto durou.

A querida Roberta acabou por fazer uma rápida análise técnica do fim de sua relação: “Foi bom enquanto durou, e acabou por falta de diálogo”. É duro dizer se o amor se dissolveu pela falta de diálogo ou se este se rarefez pela volatilização daquele.

A lição que fica dessa história é que o diálogo, a comunicação, a abertura dos corações – no dizer da Robertinha –, seja sintoma, seja causa, merece atenção especial, pois pode ser o remédio para todos os males, uma vez que ele permite a unificação das ideias, dos sentimentos, dos sonhos e também das mágoas, que só podem ser resolvidas se forem trazidas à luz, se se fizerem claras, evidentes. Se se construir uma ponte para ligar almas.

Essa ponte é o diálogo. De repente me lembrei de um poeminha que cometi há muitos anos, quando fui paraninfo de uma formatura: “Escolha ser uma ponte, caro jovem, nunca um muro/ Pontes unem, muros separam/ Pontes colocam corações a dialogar/ Muros emudecem as intenções e debilitam almas/ Escolha ser uma ponte para alcançar o futuro/ Uma simples ponte. Mas uma ponte que mostre o caminho do amar”.
Não, o diálogo não perdeu importância no mundo atual, veloz, globalizado, tecnológico, cibernético, bloguista, twiteiro. Só que ele tem sido, aparentemente, menosprezado por quem acha que ele não combina com a modernidade e, principalmente por todo homem ou mulher que colocou, por sua culpa ou não, a pirâmide dos valores humanos de cabeça para baixo.

Esclareça-se: o diálogo é uma intenção, independente do meio. É possível manter um excelente diálogo através de ferramentas como skype, o MSN, o SMS e afins. Ferramentas que podem ser bem ou mal utilizadas, como tudo na vida.

Como o verdadeiro diálogo ocorre? – A um monólogo com você, prefiro um diálogo comigo mesmo! A frase-desabafo acima pode ser uma piada, ou parte dela, mas contém uma verdade, pois não é incomum que aquilo que parece ser um diálogo – duas pessoas conversando – na verdade seja um discurso unilateral, em que um dos dois fala e o outro apenas ouve. Ainda que isso às vezes seja necessário, não estamos diante de um diálogo.

Saber dialogar é mais que saber falar. Dialogar pressupõe ouvir e analisar, antes de responder. “Dialogar é saber ouvir sem julgar, sem tomar posição imediatamente. É saber respeitar, incluir, usar os filtros mentais adequados. Dialogar é não tomar partido, definir o que está certo ou errado, não excluir aquilo que não faz parte da minha visão pessoal”, diz a psicóloga Lamara Bassoli, que é coordenadora da Escola de Diálogo de São Paulo.

Sim, existe uma instituição que se destina a ajudar as pessoas e as empresas (que nada mais são que conjuntos de pessoas) a recuperar a capacidade de dialogar e, a partir disso, promover a “transformação das experiências humanas e a ampliação da consciência”, na visão de seus fundadores (saiba mais no site: http://www.escoladedialogo.com.br/.

O diálogo é a essência da vida, considerando que a vida é um conjunto de interações

“Dialogar é prestar atenção, é uma religação consigo mesmo, com o outro, com o ambiente, com a natureza”, continua Lamara, que fala com doçura, sempre olhando nos olhos de seu interlocutor. Pode parecer estranho ter de haver uma escola para ensinar o diálogo, mas a ideia não é exatamente nova. A educação dos jovens na Antiguidade – leia-se Grécia – já pensava nisso. Educar era – e ainda é – a maneira de estimular os jovens a viver autonomamente e a colaborar com a polis, a sociedade, que na época dos gregos antigos era concentrada na vida da cidade.

Havia, nas cidades-estados gregas, um espaço destinado exclusivamente à prática do diálogo: a Ágora, o local para as trocas, para o exercício da política, do comércio, das ideias em geral. A Escola do Diálogo tem um espaço semelhante, destinado a estimular o diálogo livre, rico, respeitoso.

Então é possível aprender a dialogar, a melhorar a capacidade de comunicarse e de entender o outro? Na Antiguidade, quando a formação dos jovens começou a se tornar uma atividade social da maior importância, o estudo foi dividido em dois grandes capítulos. Um era o das Habilidades Ocupacionais, que procurava dar ao jovem um ofício, uma competência técnica, operacional, artesanal, algo com certo caráter científico, que lhe permitia ser o que hoje chamaríamos de empresário, empreendedor ou técnico especializado.

O outro capítulo, destinado principalmente aos jovens das classes mais privilegiadas, era composto pelas Artes Liberais, um conjunto de estudos cujo propósito é o de prover os jovens de conhecimentos e habilidades que lhes permitiriam manejar com mais facilidade as necessidades do cidadão, do indivíduo que vive em sociedade e é capaz de usar sua influência para viver feliz produzindo o bem.

As chamadas Artes Liberais estavam divididas em dois capítulos: o Trivium e o Quatrivium. Estes, por sua vez, tinham suas disciplinas. O Trivium era composto por gramática, retórica e dialética. E o Quatrivium se dividia em aritmética, música, geometria e astronomia.

Perceba que o Trivium tinha a finalidade de desenvolver o homem como ser estruturado para a comunicação. A gramática nos ensina a lidar com as palavras, a lógica na construção das frases, a beleza da linguagem. A retórica é a arte do falar, do discurso, da externalização das ideias. Já a dialética pressupõe a contraposição das ideias como meio para elevar o pensamento.

Em outras palavras, você estará preparado para viver em sociedade, para usufruir dela e para colaborar com ela, quando souber organizar suas ideias, quando tiver a habilidade para explicá-las e, claro, quando estiver preparado para ouvir o outro.

Só depois de estarem prontos para o diálogo é que os jovens estudantes eram apresentados às teorias dos números, da matéria e do espaço. Primeiro o homem, depois a ciência. O pensamento precisa do número, mas o número se perde em uma mente não preparada. E tal preparo vem da capacidade de análise, síntese e dedução. A indução vem depois.

Como se vê, dialogar é fundamental para a própria condição humana. O diálogo com outros começa pelo diálogo consigo mesmo, que deriva da justaposição das ideias, da fricção entre valores, do choque dos desejos, da priorização das necessidades. Sempre haverá dois, ainda que dentro de um. E onde há dois surge a oportunidade do diálogo, do engrandecimento pelo compartilhar, do enobrecimento pelo aceitar, da humildade pelo aprender.

Se olharmos mais de perto veremos que o diálogo é a essência da vida, considerando que a vida é um conjunto de interações. Em seu livro A Segunda Criação, o biólogo inglês Ian Willmut, famoso por ser o “pai” da ovelha Dolly, o primeiro mamífero gerado pelo processo de clonagem, escreve sobre o diálogo como fonte de vida. Diz ele: “Os genes não operam isoladamente. Eles estão em diálogo constante com o resto da célula que, por sua vez, responde a sinais de outras células do corpo que, por sua vez, estão em contato com o ambiente externo. Quando esse diálogo não se processa corretamente, os genes saem de controle, as células crescem desordenadamente, e o resultado é o câncer”.

Interessante a visão do geneticista: o câncer é resultado da falta de diálogo. Podemos estar falando do câncer orgânico, tumoral, mas também do câncer social, das relações, que mata igual, se não um organismo, uma relação, uma amizade, um negócio, um casamento. Como foi o caso de meus amigos Roberta e Claudio, ambos ótimas pessoas. Pena que o diálogo deixou de participar dessa relação, que deve ser a três para que seja um só.