Verdade


Se apenas houvesse uma única verdade, não poderiam pintar-se cem telas sobre o mesmo tema.

Picasso

quarta-feira, 23 de fevereiro de 2011

O Livro da Solidão

Cecília Meireles

Os senhores todos conhecem a pergunta famosa universalmente repetida: "Que livro escolheria para levar consigo, se tivesse de partir para uma ilha deserta...?"

Vêm os que acreditam em exemplos célebres e dizem naturalmente: "Uma história de Napoleão." Mas uma ilha deserta nem sempre é um exílio... Pode ser um passatempo...

Os que nunca tiveram tempo para fazer leituras grandes, pensam em obras de muitos volumes. É certo que numa ilha deserta é preciso encher o tempo... E lembram-se das Vidas de Plutarco, dos Ensaios de Montaigne, ou, se são mais cientistas que filósofos, da obra completa de Pasteur. Se são uma boa mescla de vida e sonho, pensam em toda a produção de Goethe, de Dostoievski, de Ibsen. Ou na Bíblia. Ou nas Mil e uma noites.

Pois eu creio que todos esses livros, embora esplêndidos, acabariam fatigando; e, se Deus me concedesse a mercê de morar numa ilha deserta (deserta, mas com relativo conforto, está claro — poltronas, chá, luz elétrica, ar condicionado) o que levava comigo era um Dicionário. Dicionário de qualquer língua, até com algumas folhas soltas; mas um Dicionário.

Não sei se muita gente haverá reparado nisso — mas o Dicionário é um dos livros mais poéticos, se não mesmo o mais poético dos livros. O Dicionário tem dentro de si o Universo completo.

Logo que uma noção humana toma forma de palavra — que é o que dá existência ás noções — vai habitar o Dicionário. As noções velhas vão ficando, com seus sestros de gente antiga, suas rugas, seus vestidos fora de moda; as noções novas vão chegando, com suas petulâncias, seus arrebiques, às vezes, sua rusticidade, sua grosseria. E tudo se vai arrumando direitinho, não pela ordem de chegada, como os candidatos a lugares nos ônibus, mas pela ordem alfabética, como nas listas de pessoas importantes, quando não se quer magoar ninguém...

O Dicionário é o mais democrático dos livros. Muito recomendável, portanto, na atualidade. Ali, o que governa é a disciplina das letras. Barão vem antes de conde, conde antes de duque, duque antes de rei. Sem falar que antes do rei também está o presidente.

O Dicionário responde a todas as curiosidades, e tem caminhos para todas as filosofias. Vemos as famílias de palavras, longas, acomodadas na sua semelhança, — e de repente os vizinhos tão diversos! Nem sempre elegantes, nem sempre decentes, — mas obedecendo á lei das letras, cabalística como a dos números...

O Dicionário explica a alma dos vocábulos: a sua hereditariedade e as suas mutações.

E as surpresas de palavras que nunca se tinham visto nem ouvido! Raridades, horrores, maravilhas...

Tudo isto num dicionário barato — porque os outros têm exemplos, frases que se podem decorar, para empregar nos artigos ou nas conversas eruditas, e assombrar os ouvintes e os leitores...

A minha pena é que não ensinem as crianças a amar o Dicionário. Ele contém todos os gêneros literários, pois cada palavra tem seu halo e seu destino — umas vão para aventuras, outras para viagens, outras para novelas, outras para poesia, umas para a história, outras para o teatro.

E como o bom uso das palavras e o bom uso do pensamento são uma coisa só e a mesma coisa, conhecer o sentido de cada uma é conduzir-se entre claridades, é construir mundos tendo como laboratório o Dicionário, onde jazem, catalogados, todos os necessários elementos.

Eu levaria o Dicionário para a ilha deserta. O tempo passaria docemente, enquanto eu passeasse por entre nomes conhecidos e desconhecidos, nomes, sementes e pensamentos e sementes das flores de retórica.

Poderia louvar melhor os amigos, e melhor perdoar os inimigos, porque o mecanismo da minha linguagem estaria mais ajustado nas suas molas complicadíssimas. E sobretudo, sabendo que germes pode conter uma palavra, cultivaria o silêncio, privilégio dos deuses, e ventura suprema dos homens.
(SÃO PAULO, FOLHA DA MANHÃ, 11 DE JULHO DE 1948.)

domingo, 20 de fevereiro de 2011

PUDIM

Por Marta Medeiros

Não há nada que me deixe mais frustrada
do que pedir Pudim de sobremesa,
contar os minutos até ele chegar
e aí ver o garçom colocar na minha frente
um pedacinho minúsculo do meu pudim preferido.
Um só!!!!!!!!!

Quanto mais sofisticado o restaurante,
menor a porção da sobremesa.
Aí a vontade que dá é de passar numa loja de conveniência,
comprar um pudim bem cremoso
e saborear em casa com direito a repetir quantas
vezes a gente quiser,
sem pensar em calorias, boas maneiras ou moderação.

O PUDIM é só um exemplo do que tem sido nosso cotidiano.

A vida anda cheia de meias porções,
de prazeres meia-boca,
de aventuras pela metade.
A gente sai pra jantar, mas come pouco.

Vai à festa de casamento, "mas" resiste aos bombons.

Conquista a chamada liberdade sexual,
mas tem que fingir que é difícil
(a imensa maioria das mulheres
continua com pavor de ser rotulada de 'fácil').

Adora tomar um banho demorado,
mas se contém pra não desperdiçar os recursos do planeta.

Quer beijar aquele cara 20 anos mais novo,
mas tem medo de fazer papel ridícula!!!!!

Tem vontade de ficar em casa vendo um DVD,
esparramada no sofá,
mas se obriga a ir malhar.
E por aí vai.

Tantos deveres, tanta preocupação em 'acertar',
tanto empenho em passar na vida sem pegar recuperação...

Aí a vida vai ficando sem tempero,
politicamente correta
e existencialmente sem-graça,
enquanto a gente vai ficando melancolicamente
sem tesão...

Às vezes dá vontade de fazer tudo 'errado'.
Deixar de lado a régua,
o compasso,
a bússola,
a balança
e os 10 mandamentos.

Ser ridícula, inadequada, incoerente
e não estar nem aí pro que dizem e o que pensam a nosso respeito.
Recusar prazeres incompletos e meias porções.

Até Santo Agostinho, que foi santo, uma vez se rebelou
e disse uma frase mais ou menos assim:
'Deus, dai-me continência e castidade, mas não agora'...

Nós, que não aspiramos à santidade e estamos aqui de passagem,
podemos (devemos?) desejar
vários pedaços de pudim,
bombons de muitos sabores,
vários beijos bem dados,
a água batendo sem pressa no corpo,
o coração saciado.

Um dia a gente cria juízo.
Um dia.
Não tem que ser agora.

Por isso, garçom, por favor, me traga:
um pudim inteiro
um sofá pra eu ver 10 episódios do 'Law and Order',
uma caixa de trufas bem macias
e o Richard Gere, nu, embrulhado pra presente OK?
Não necessariamente nessa ordem.
Depois a gente vê como é que faz pra consertar o estrago.

quinta-feira, 17 de fevereiro de 2011

Casamento é um Estado de Espírito

mARTHA mEDEIROS

Pra começar, casamento não deveria ser um divisor de águas na vida de uma pessoa, com uma data escolhida para separar definitivamente o antes do depois.
Em vez de decidir casar, deveríamos permitir que o casamento acontecesse espontaneamente, sem que a gente nem percebesse. Comigo, sortuda que sou, aconteceu assim. Estávamos juntos havia um tempão e cada um morava no seu apartamento. Aos poucos, a cumplicidade foi aumentando, nossas roupas e discos começaram a se misturar, já não queríamos dormir separados. Não fazíamos muitos planos para o futuro, curtíamos a companhia um do outro serenamente, sem pactos nem juras de amor eterno, até que um belo dia nos demos conta de que já estávamos casados, casadíssimos, a questão era oficializar ou não. Oficializamos, assinamos os papéis, e o que mudou a partir daí?

Nada. Qual é a data do nosso casamento? 13 de janeiro, 30 de março, 23 de outubro, 8 de dezembro... escolha você. Em cada dia dos nossos quatro anos de namoro a gente casou um pouquinho. O que equivale a dizer que começamos a casar no dia em que nos conhecemos: não foi um crime premeditado.
Casamento é grude? Só se o casal ambiciona o ódio mútuo. Casamento é a união de duas pessoas que têm afinidades, que gostam muito de conversar uma com a outra, de transar uma com a outra e que resolvem morar juntas porque é mais econômico e porque facilita na hora de ter filhos, que é uma aventura deliciosa a ser compartilhada. Se ambos estiverem de acordo quanto a isso, aceitarão com naturalidade que cada um tenha os próprios amigos, os próprios passatempos, suas viagens, seu trabalho, enfim, que sejam donos de uma vida individualizada e inteira, e não mutilada. Leva-se um tempo até descobrir que esse é um arranjo que funciona. Pena que, antes que o casal amadureça e chegue a esse ponto, muitos desistem por puro apego às convenções.
Você deve estar pensando: muito bem, e agora? Ela vai continuar enrolando ou vai tocar naquele ponto nevrálgico que implode a maioria das relações?
Não, ela não vai continuar enrolando. É hora de falar na dolorosa. A questão da fidelidade.
Se Jennifer Aniston continuar casada com Brad Pitt por mais dez anos, até ela, com aquele monumento em casa, vai começar a bocejar e a olhar impaciente pela janela. Não porque Brad Pitt tenha dentes feios e espinhas no rosto (foi o Rubens Ewald que disse isso; pra mim Brad segue perfeito). A razão será outra: amor e sexo não são da mesma família. O amor é de família nobre e tradicional, enquanto o sexo vem da periferia e é chegado numa promiscuidade. Nem os sentimentos mais elevados por nosso parceiro conseguem evitar que tenhamos desejos secretos e fora de hora. Desejar é humano, meritíssimo, não nos condene. Estranho seria se a gente não tivesse nenhuma fantasia, nenhuma excitação pelo que acontece do lado de fora da cela.

Homens sentem vontade de transar com outras mulheres, e mulheres sentem vontade de transar com outros homens pelas mais diversas razões: para testar seu poder de sedução, para dar um up na auto-estima, para recuperar a adolescência perdida ou porque se apaixonaram por outra pessoa inadvertidamente - arrisco até a dizer: inocentemente. Ninguém tem controle absoluto sobre si mesmo, pode acontecer com qualquer um. E aí, como se resolve?

Quem é temente a Deus reprime. Quem é temente aos olhos dos vizinhos reprime. Quem é temente a si mesmo reprime. Mas quem não quer passar o resto da vida privando-se de sonhar, de se encantar, de namorar outra vez encara e assume os riscos, que não são poucos. Muitos acabam se separando, mesmo tendo um casamento que era satisfatório. No entanto, a tal "pulada de cerca" às vezes não gera maiores conflitos internos, é apenas uma necessidade paralela.

Não é assunto fácil, tampouco é novo. É um problema antigo e cabeludo. Envolve religião e seu subproduto: culpa. Sentimos culpa por tudo. Culpa por sermos avançadas demais, medrosas demais, galinhas demais, santinhas demais. Culpa pela nossa libido, pelas nossas fraquezas, pela nossa coragem. Culpa por estarmos mentindo, omitindo, enganando. Por ter permitido que o casamento chegasse a esse ponto de fragilidade - ou de segurança extrema, acreditando que tudo será perdoado e compreendido.
Casamento é um compromisso sério, mas não deveria significar prisão, submissão, anulação, obediência e tudo mais que caracteriza uma relação tirânica. Casamento deve significar amizade, sexo, respeito, diversão e companhia. Casamento tem que ser alegre, tem que ter sintonia, liberdade e muito jogo de cintura. Casamento não é brincadeira de criança, mas tem que ser leve, e é imprescindível que haja maturidade e - atenção - inteligência! A burrice é inimiga das relações, ela é que permite o surgimento de mesquinharias, preconceitos, implicâncias e ciúmes doentios. Casamento tem que ser aberto, não necessariamente no sentido sexual - isso é negociado caso a caso -, mas aberto para a renovação, para a conversa franca, para as necessidades de cada um, para a intimidade que vai além dos corpos, intimidade de almas, intimidade que permite a gente enxergar o outro, aceitar o outro e viver de maneira menos repetitiva e convencional. Cada casamento exige uma fórmula própria, cada casal inventa a sua, mas de uma coisa não se pode prescindir: da flexibilidade.

Parece facílimo, mas é um deus-nos-acuda. De tudo o que foi dito, a única conclusão a que chego é que os casamentos seguirão desmoronando se não houver uma compreensão do assunto que ultrapasse o romantismo. Amor é fundamental, mas não basta. É preciso um não-sei-quê que a gente não explica, mas sente. Algo que está no ar, no olhar, e que dispensa racionalizações.

segunda-feira, 14 de fevereiro de 2011

Os Ombros Suportam o Mundo

Carlos Drummond de Andrade

Chega um tempo em que não se diz mais: meu Deus.
Tempo de absoluta depuração.
Tempo em que não se diz mais: meu amor.
Porque o amor resultou inútil.
E os olhos não choram.
E as mãos tecem apenas o rude trabalho.
E o coração está seco.


Em vão mulheres batem à porta, não abrirás.
Ficaste sozinho, a luz apagou-se,
mas na sombra teus olhos resplandecem enormes.
És todo certeza, já não sabes sofrer.
E nada esperas de teus amigos.


Pouco importa venha a velhice, que é a velhice?
Teu ombros suportam o mundo
e ele não pesa mais que a mão de uma criança.
As guerras, as fomes, as discussões dentro dos edifícios
provam apenas que a vida prossegue
e nem todos se libertaram ainda.
Alguns, achando bárbaro o espetáculo,
prefeririam (os delicados) morrer.
Chegou um tempo em que não adianta morrer.
Chegou um tempo em que a vida é uma ordem.
A vida apenas, sem mistificação.

sexta-feira, 11 de fevereiro de 2011

O homem que só tinha certezas

Adriana Falcão

Nem o homem feliz de Maiakovsky nem o homem liberto de Paulo Mendes Campos, resolvi imaginar outra improbabilidade. Digamos que aparecesse agora, justo aqui no Brasil, no Rio de Janeiro, mais exatamente, bem aí na sua frente, um homem que só tivesse certezas.

O homem que só tinha certezas quase nunca usava ponto de interrogação, e em seu vocabulário não constavam as expressões: talvez, quiçá, quem sabe, porventura.

Parece que foi de nascença. Ele já teria vindo ao mundo assim, com todas as certezas junto, pulou a fase dos por quês e nunca soube o que era curiosidade na vida. Na escola, era uma sensação. Mas não ligava muito pra isso não. E cresceu achando muito natural viver derramando afirmações pela boca. Tinha resposta pra tudo, o homem que só tinha certezas, mas o maior orgulho do homem eram as certezas mais duvidosas que ele tinha. A certeza de que o mais fraco ia vencer, de que as coisas iam melhorar, de que o desenganado ainda teria muitos anos pela frente.

A notícia espalhou-se rapidamente. Como ele vivia no meio de pessoas, e pessoas vivem cheias de dúvidas, logo começaram a pedir sua opinião para os mais diversos assuntos, os triviais e os de grande importância, e ele, certo de que podia viver muito bem de suas certezas, virou um consultor. Pendurou em sua porta uma placa onde estava escrito "Consultor de tudo" e o negócio foi crescendo aos pouquinhos. Devido ao boca-a-boca favorável de clientes e a um único anúncio no rádio, passou a atender, sem nenhum exagero, milhares de pessoas por dia, até que limitou o número de consultas diárias para quatrocentos e oitenta, um minuto e meio por pessoa, o que era mais do que suficiente para uma resposta certa desde que a pergunta não fosse muito longa.

Chegava gente do país inteiro e depois de outros continentes, pessoas comuns, pessoas ilustres, todas elas indecisas, mas cada pessoa só tinha direito a uma pergunta por consulta, o que as deixava mais indecisas ainda. Certa vez uma moça chegou na dúvida se devia perguntar primeiro sobre o amor ou o trabalho, no que o homem respondeu, sobre o amor, é claro, senão você não vai conseguir trabalhar direito, e deu por encerrada a consulta. O homem que só tinha certezas aconselhou um garoto tímido a tomar quatro cervejas, encorajou um político receoso a aprovar um projeto esquisitíssimo que se destinava a melhorar a vida dos homens, avisou a uma senhora preocupada com os anos que no caso dela nada melhor do que beijos na boca, desentorpeceu um rapaz doente de amor por uma mulher que gostava de outro, convenceu o ministro da fazenda de que ou o dinheiro era pouco, ou eram muitos os homens, ou ele estava louco, ou alguém tinha se enganado nas contas.

Não demorou muito para se tornar capa de todas as revistas e personagem assíduo dos programas de TV. Para cada pergunta havia uma só resposta certa e era essa que ele dava, invariavelmente, exterminando aos pouquinhos todas as dúvidas que existiam, até que só restou uma dúvida no mundo: será que ele não vai errar nunca? Mas ele nunca errava, e já nem havia mais o que errar, uma vez que não havia mais dúvidas.

Num mundo que só tinha certezas, o homem que só tinha certezas virou apenas mais um homem no mundo. Melhor assim, ele pensava, ou melhor, tinha certeza.

Um dia aconteceu um imprevisto, e o homem que só tinha certezas, quem diria, acordou apaixonado. Para se assegurar de que aquela era a mulher certa para ele, formulou cento e vinte perguntas, que ela respondeu sem vacilar, mandou fazer mapas do céu, exames de sangue, contagem de triglicerídeos, planilhas complicadíssimas e finalmente apresentou a moça à sua mãe e ao seu cachorro. Os dois se amaram noites adentro, foram a Barcelona, tiraram fotos juntos, compraram álbuns, porta-retratos, garfos, facas, um escorredor de pratos, tiveram filhos e tal, e, desde então, por alguma razão desconhecida, o homem que só tinha certezas foi perdendo todas elas, uma por uma. No início ainda tentou disfarçar, por via das dúvidas, quem sabe era um mal passageiro? Mas as dúvidas multiplicavam-se como praga (dúvidas se multiplicam?), espalharam-se pelo mundo, e agora, meu Deus? Deus existe? Existe sim. Ou será que não? Ele não estava bem certo.

terça-feira, 8 de fevereiro de 2011

Faça Isso!

Soninha Francine

às vezes somos nós mesmos que desrespeitamos nossos desejos e preferencias. Como é bom ser forçado a fazer alguma coisa de vez em quando! É eu sei que isso soa estranho. Jamais me imaginei dizendo 'é bom ser forçada'. Mas reparem em dois detalhes essenciais: 'algumas' e 'de vez em quando'.

Pense: quantas coisas na vida você teria deixado de fazer caso não fosse obrigado? Escovar os dentes... Lavar as mãos... Ir à escola... Todo santo dia, e não só quando e se tivesse vontade. Isso caso não houvesse nada melhor para fazer, como dormir mais um pouco, ver TV ou ir a praia.

Claro que a escola podia ser diferente (...) Escola é muito importante para nós por um milhão de razões e, se não houvesse um adulto dizendo 'tem de ir' é bem possível que não fossemos.

Depois de grande, continuamos a precisa de empurrazinhos aqui e ali. Se o médico não diz: ' pare de fumar ou morra', o sujeito não para. Se o exame de colesterol não avisa ' esta passando da hora de melhorar a dieta e ser menos sedentário', o vivente acaba deixando para amanhã a alimentação saudavel e a caminhada diária.

Nós não somos forçados apenas a fazer coisa de que não gostamos. Nós também precisamos ser obrigados, as vezes, a fazer coisas que adoramos! Eu adoro acordar cedo. Amo o ar frio da manhã, gosto de ter tempo antes da hora do almoço. Mas gosto de ficar um pouco mais na cama... Só que o 'mais um pouco' nunca é o suficiente.

(...) Quando sou obrigada a sair bem cedo da casa, eu me lembro - na marra- do quanto isso me dá prazer. Tento levar a lembrança para os dias em que a agenda não me derruba da cama, mas de tempos em tempos ela se esvai...

Outro dia, uma amiga fez reservas para passarmos o fim de semana no litoral. Ainda bem - sem isso, eu não teria ido! Havia mil motivos para ficar em casa, mas foi ótimo mudar de ares! Não quero ser forçada o tempo todo a fazer o que é bom para mim (antes que alguém resolva cuidar da minha vida o tempo todo!). mas reconheço que, ás vezes, colocar minha vontade em segundo plano me faz bem. Faz até com que eu respeite minha própria vontade.

sábado, 5 de fevereiro de 2011

O Haver

Vinícius de Moraes

Resta, acima de tudo, essa capacidade de ternura
Essa intimidade perfeita com o silêncio
Resta essa voz íntima pedindo perdão por tudo
- Perdoai-os! porque eles não têm culpa de ter nascido…

Resta esse antigo respeito pela noite, esse falar baixo
Essa mão que tateia antes de ter, esse medo
De ferir tocando, essa forte mão de homem
Cheia de mansidão para com tudo quanto existe.

Resta essa imobilidade, essa economia de gestos
Essa inércia cada vez maior diante do Infinito
Essa gagueira infantil de quem quer exprimir o inexprimível
Essa irredutível recusa à poesia não vivida.

Resta essa comunhão com os sons, esse sentimento
Da matéria em repouso, essa angústia da simultaneidade
Do tempo, essa lenta decomposição poética
Em busca de uma só vida, uma só morte, um só Vinicius.

Resta esse coração queimando como um círio
Numa catedral em ruínas, essa tristeza
Diante do cotidiano; ou essa súbita alegria
Ao ouvir passos na noite que se perdem sem história.

Resta essa vontade de chorar diante da beleza
Essa cólera em face da injustiça e o mal-entendido
Essa imensa piedade de si mesmo, essa imensa
Piedade de si mesmo e de sua força inútil.

Resta esse sentimento de infância subitamente desentranhado
De pequenos absurdos, essa capacidade
De rir à toa, esse ridículo desejo de ser útil
E essa coragem para comprometer-se sem necessidade.

Resta essa distração, essa disponibilidade, essa vagueza
De quem sabe que tudo já foi como será no vir-a-ser
E ao mesmo tempo essa vontade de servir, essa
Contemporaneidade com o amanhã dos que não tiveram ontem nem hoje.

Resta essa faculdade incoercível de sonhar
De transfigurar a realidade, dentro dessa incapacidade
De aceitá-la tal como é, e essa visão
Ampla dos acontecimentos, e essa impressionante

E desnecessária presciência, e essa memória anterior
De mundos inexistentes, e esse heroísmo
Estático, e essa pequenina luz indecifrável
A que às vezes os poetas dão o nome de esperança.

Resta esse desejo de sentir-se igual a todos
De refletir-se em olhares sem curiosidade e sem memória
Resta essa pobreza intrínseca, essa vaidade
De não querer ser príncipe senão do seu reino.

Resta esse diálogo cotidiano com a morte, essa curiosidade
Pelo momento a vir, quando, apressada
Ela virá me entreabrir a porta como uma velha amante
Sem saber que é a minha mais nova namorada...

quinta-feira, 3 de fevereiro de 2011

Você pensa demais...

Ana Maria Chagas Silva
"Você pensa demais!", diz a amiga.
"O filho tá crescido."
"O marido tá bem servido."
"O emprego tá garantido."

"Você pensa demais!", diz a irmã.
"O pai melhora a cada manhã."
"A mãe fez torta de maçã."
"O importante é ter toda a família sã."

"Você pensa demais!", diz o filho.
"Tirar notas baixas, é normal."
"Vem escutar esse som LOUD!
"Caraca, mãe! É na moral!”

"Você pensa demais!", diz o tempo.
”Não espero mais teu sorriso.”
"Envelheço teus traços, e aviso:
"Vê se perde um pouco de juízo!"

terça-feira, 1 de fevereiro de 2011

Casamento e expectativas

Por Elizabeth Gilbert no Livro Comprometida

(...) Veja, não quero me arriscar aqui a romantizar a vida simples e pitoresca dos camponeses. Vou deixar bem claro que não tenho a mínima vontade d trocar de vida com nenhuma das mulheres que conheci naquela aldeia hmong no Vietnã. Bastam as conseqüências dentarias para eu não querer a vida delas. Além disso, seria grotesco e ofensivo se eu tentasse adotar a sua visão de mundo. Na verdade, a marcha inexorável do progresso industrial indica que o mais provável é os hmong  adotarem a minha visão de mundo nos próximos anos.

Na verdade, isso já esta acontecendo. Agora que têm contato com mulheres ocidentais como eu no meio da multidão de turistas, as meninas de 12 anos, como a minha amiga Mai, vivem aqueles primeiros momentos importantíssimos de hesitação cultural. Chamo isso de momento espera ai: aquele instante fundamental em que as meninas das culturas tradicionais começam a pensar no que exatamente as aguarda caso se casem com 13 anos e comecem a ter filhos logo depois. Começam a perguntar se não gostariam de escolher outra coisa ou, alias, se simplesmente não gostariam de escolher. Assim que as meninas das sociedades fechadas começam a ter essas idéias tudo explode. Mai, trilingue, esperta e observadora, já vislumbra outro conjunto de opções na vida. Logo, logo, começaria a fazer exigências. Em outras palavras: pode ser tarde demais até para os hmong serem hmong.

Portanto, não, não me disponho – ou talvez nem possa – abrir mão da minha vida de anseios individualistas, todos direitos de nascença da minha modernidade. Como a maioria dos seres humanos, depois de me mostrarem opções vou preferir ter escolha na vida: escolhas expressivas, individualistas, inescrutáveis e indefensáveis, às vezes talvez arriscadas... mas todas minhas. Na verdade, a simples quantidade de escolhas que já me ofereceram na vida – uma procissão de opções quase embaraçosas – faria saltarem da cabeça os olhos da minha amiga, a avó hmong, Em conseqüência dessa liberdade pessoal, minha vida me pertence e se parece comigo, a um nível impensável nos morros do norte do Vietnã, mesmo hoje. É quase como se eu fosse uma cepa de mulher inteiramente nova (pode nos chamar de Homo ilimitatus). E embora nós, dessa admirável nova espécie, gozemos de possibilidades vastas e magníficas, com alcance quase infinito, é importante lembrar que essas vidas ricas em escolhas têm o potencial de criar um tipo próprio de problema. Somos suscetíveis a incertezas emocionais e neuroses provavelmente nada comuns aos hmong, mas que hoje em dia fogem ao controle entre os meus contemporâneos de, digamos, Baltimore.

O problema, falando simplesmente, é que não podemos escolher tudo ao mesmo tempo. Assim, corremos o risco de ficar paralisados pela indecisão, com um pavor terrível de que cada escolha esteja errada. (...) As ocasiões em que realmente optamos e depois sentimos ter assassinado algum aspecto do nosso ser ao tomar aquela única decisão concreta são igualmente inquietantes. Quando escolhemos a porta numero 3, tememos matar uma parte diferente da nossa alma, mas igualmente decisiva, que só poderia se manifestar se tivéssemos entrado pela porta numero um ou pela porta numero 2.

(...) Imagine uma vida em que, todos os dias, alguém enfrenta não duas, nem três, mas dúzias de escolhas, e da para erceber porque o mundo moderno , apesar de todas as suas vantagens, se tornou em altíssimo grau uma máquina fazedora de neurose. Num mundo de possibilidades tão abundantes, muitos de nós simplesmente brocham de indecisão. Ou então a jornada da vida sai dos trilhos varias vezes, e voltamos para experimentar as portas que deixamos de lado na primeira rodada, desesperados para acerta agora. Ou nos tornamos comparadores compulsivos, sempre medindo a nossa vida em comparação com a dos outros, achando no fundo que deveríamos ter seguido aquele caminho que eles escolheram.

É claro que a comparação compulsiva só leva a caso debilitantes de Lebensneid, ou inveja da vida, como dizia Nietzsche: a certeza de que alguém é muito mais sortudo do que nós e de que, se tivéssemos aquele corpo, aquele marido, aqueles filhos, aquele emprego, tudo seria mais fácil, maravilhoso e feliz. ( Um terapeuta amigo meu define esse problema simplesmente como a doença que faz todos os meus pacientes solteiros sonharem secretamente em se casar e todos os meus pacientes casados sonharem secretamente em ser solteiros). Como é difícil ter certeza, as decisões de todos se transformam em acusações ás decisões de todos, e como não há mais modelo universal do que é um bom homem ou uma boa mulher, quase se tem de conquistar uma medalha pessoal de mérito em navegação e orientação emocional para achar o caminho pela vida.

Todas essas escolhas e todo esse anseio podem criar um tipo esquisito de assombração na vida, como se os fantasmas de todas as outras possibilidades não escolhidas ficassem para sempre num mundo de sombras à nossa volta, perguntando sem parar: Tem certeza de que era isso mesmo que vc queria? E essa pergunta corre mais risco de nos perseguir no casamento, exatamente porque o investimento emocional nessa escolha personalíssima passou a ser imenso.

Pode acreditar, o casamento ocidental moderno tem muitos pontos positivos em relação ao casamento hmong tradicional (...). Mas há uma dádiva importantíssima que a noiva hmong tradicional quase sempre recebe no dia do casamento e que costuma se esquivar da noiva ocidental moderna: o dom da certeza. Em geral, quando só há um caminho a frente podemos ter confiança de que é o caminho certo. E  a noiva cuja expectativa de felicidade é necessariamente pequena talvez esteja mais protegida do risco de sofrer um decepção devastadora pelo caminho.

Admito que, até hoje, não sei direito como usar essa informação. Não consigo me forçar a adotar o lema Queira menos!. Também não consigo imaginar que daria a moça as vésperas do casamento o conselho de reduzir as expectativas para se feliz na vida. Essa idéia vai no sentido contrário de todos os ensinamentos modernos que recebi. Também já vi essa tática sair pela culatra. Tive uma amiga da faculdade que estreitou de propósito as opções de vida, como se quisesse se vacinar contra expectativas demasiado ambiciosa. (...) Com confiança inabalável anunciou que se tornaria apenas esposa e mãe. A simplicidade desse arranjo lhe pareceu totalmente segura: a certeza comparada às convulsões de indecisão de que tantas colegas mais ambiciosas sofriam. Mas doze anos depois, quando o marido a trocou pro uma mulher mais nova, a raiva da minha amiga e a sensação de ter sido traída foram as mais ferozes que já vi. Ela praticamente implodiu de ressentimento; não tanto contra o marido, mas contra o universo (...).Eu pedi tão pouco! Não parava de dizer, como se bastassem as exigências diminutas para protegê-la de decepções. Mas acho que ela se enganava; na verdade pediu muito. Ousara pedir felicidade e ousara esperar que a felicidade viesse do casamento. Isso é tanto que é impossível pedir mais.

(...) também peço muitíssimo. Isso é emblemático de nossa época. Permitiram-me esperar grandes coisas na vida. Permitiram-me esperar muito mais da experiência de amar e viver do que jamais se permitiu a maioria das mulheres da história. Quanto as questões de intimidade, quero muitas coisas do meu homem, todas as mesmo tempo. Isso me lembra uma historia que minha irmão me contou sobre uma inglesa que visitou os EUA no inverno de 1919 e que, escandalizada, escreveu uma carta para casa dizendo que nesse estranho país da America havia mesmo gente que viva com a expectativa de aquecer todas as partes do corpo ao mesmo tempo! A tarde que passei debatendo o casamento com as hmong me fez indagar se eu, nas questões do coração, também não me tornei uma pessoa assim – uma mulher que acredita que o meu amado deveria ser capaz de, num passe de mágica, manter aquecida todas as partes do meu ser emocional ao mesmo tempo.

Nós, americanos, costumamos dizer que o casamento é trabalho duro. (...) Mas como é que o casamento vira trabalho duro? É assim: o casamento vira trabalho duro quando despejamos todas as expectativas de felicidade da vida nas mãos de uma mera pessoa.  Manter isso funcionando é trabalho duro. Uma pesquisa recente feita com moças americanas descobriu que hoje em dia as mulheres procuram no marido, mais que tudo, um homem que as inspire, o que segundo todos os padrões, é pedir muito. Como termo de comparação, as moças da mesma idade entrevistadas em na década de 20 tinham mais probabilidade de escolher o parceiro com base em qualidades como decência e honestidade ou na capacidade de sustentar a família. Mas isso agora não basta. Agora queremos ser inspiradas pelos cônjuges! Diariamente! Vai estar à altura, querido?