Por Regina Navarro Lins
É raro encontrar uma mulher com mais de 35 anos que, não tendo filhos, esteja tranqüila quanto à possibilidade de nunca vir a ser mãe. Com o passar do tempo, algumas tomam decisões que não podem mais ser adiadas: escolhem qualquer homem para ser pai do seu filho ou então, numa medida mais extrema, buscam num banco de sêmen um doador desconhecido. Será que todas essas mulheres inquietas quanto à maternidade desejam realmente ter filhos? Ser mãe seria então um desejo inerente à natureza da mulher, que só assim alcançaria a plena realização? Não acredito em nada disso. Mesmo porque a maternidade, como vários outros aspectos da nossa vida tidos como inquestionáveis, tem uma história.
Em todas as épocas e lugares, a partir da instituição do patriarcado, era comum o homem repudiar a mulher e se casar novamente. Para isso não faltavam pretextos e um dos mais convincentes era o não nascimento de um filho. Afinal, ele queria ter um herdeiro ou mais braços para ajudá-lo no trabalho. O contrato de casamento era feito entre as duas famílias e, caso a mulher não procriasse, era devolvida aos pais ou ia para um convento. O casamento só se tornou indissolúvel a partir do século XIII, quando a Igreja passou a controlá-lo. Entretanto, observando a forma como as mães se relacionavam com os filhos nos séculos XVII e XVIII, fica claro que não somente o desejo ter filhos, mas também o amor materno, não é inerente às mulheres. É um sentimento que pode ou não se desenvolver, dependendo dos interesses sócio-econômicos de um grupo.
Naquela época a amamentação passou a ser considerada ridícula e repugnante e não era considerado digno de uma mulher amamentar seu próprio filho. Só para se ter uma idéia, das 20 mil crianças nascidas em Paris, em 1780, menos de mil foram amamentadas pelas mães. Todas as outras foram morar com amas-de-leite, na maioria das vezes mulheres doentes, que nem leite tinham. Os pedagogos recomendavam aos pais frieza em relação aos filhos, lembrando-lhes incessantemente sua malignidade natural, que seria pecado alimentar. E as mães eram criticadas duramente caso demonstrassem ternura. A finalidade da educação era salvar a alma do pecado; para isso não se poupavam argumentos para convencer as mães de que as crianças deveriam ser severamente castigadas.
Mas houve uma grande reviravolta. A inclusão da idéia do amor romântico como possibilidade para o casamento, junto a outras várias influências, transformaram as mentalidades a partir do final do século XVIII. Com o surgimento das fábricas e escritórios, a área doméstica começou a se opor à área pública, cultivando-se a casa como lar e a necessária privacidade. Ocorreu então o que alguns autores denominam "a invenção da maternidade". O novo papel da mulher, a mãe idealizada, originou uma nova concepção de feminilidade. A imagem da esposa e mãe reforçou um modelo diferente para os dois sexos das atividades e dos sentimentos. Associou-se maternidade a feminilidade, como sendo atributos da personalidade.
No século passado várias teorias foram criadas sustentando que o único prazer da mulher era ter filhos e criá-los, e que ela não se interessaria por sexo. Seu aparelho genital serviria tão somente à procriação. O fato de ser capaz de ter filhos passou a significar que os desejaria naturalmente. Claro que essas idéias, além de comprometerem a sexualidade feminina, atuam como pressão ideológica. Muitas mulheres acreditam que desejam filhos sem que esse desejo realmente exista. Quando o condicionamento cultural é muito forte, ao nos tornar adultos não sabemos mais diferenciar o que desejamos realmente e o que aprendemos a desejar.
Atualmente outra grande transformação está em andamento. Para as mulheres que julgam que sua realização pessoal depende do êxito profissional, a questão da maternidade se coloca em outros termos. Elas têm filhos cada vez mais tarde e esperam de seus parceiros uma divisão igualitária nos trabalhos domésticos e na educação das crianças. E a crescente rejeição aos modelos tradicionais de comportamento permite que se percebam com mais clareza os próprios desejos. Ter ou não ter filhos passa a ser uma opção individual, longe da cobrança de corresponder ao modelo imposto de mulher ideal.
Há uma descrição do cérebro humano que é bem simples e muito didática. Segundo ela, nós não teríamos um cérebro só, mas três – ainda que também pudéssemos dizer que são três partes do mesmo órgão. Essas partes têm funções diferentes, mas muito complementares. Nosso cérebro seria então uma espécie de três em um, um conjunto de estruturas que são chamadas a agir em função das diferentes situações que a vida nos oferece.
O primeiro cérebro, que foi o primeiro a surgir na evolução do homem, chama-se sistema reptiliano, porque é uma herança daqueles bichinhos simpáticos, como os crocodilos e os dinossauros. Suas funções estão inteiramente ligadas aos instintos de sobrevivência física, como comer, economizar energia, esconder-se, fugir e também gerar o impulso sexual, pois dele depende a sobrevivência da espécie.
O segundo cérebro chama-se sistema límbico, é bem mais novo que o anterior e tem sob sua jurisdição os sentimentos e as emoções. Graças a ele somos capazes de amar, odiar, sentir medo, raiva, saudade, prazer, ambição, ciúmes. Esse cadinho de sensações que nos fazem sentir bem ou mal, gozar com a vida ou sofrer por causa dela. Sem dúvida, o surgimento dessa qualidade emocional nos diferenciou de muitos animais, como os répteis, que só têm instintos de sobrevivência física. Um jacaré é incapaz de amar ou odiar, ele só quer viver. Não sabe o que está perdendo, o bobinho.
Só que o ser humano, e apenas ele – pelo menos com essa configuração –, tem o terceiro cérebro, chamado de córtex cerebral. Uma fina camada que recobre todo o órgão (córtex significa casca) e que concentra a maior quantidade de neurônios existente na natureza. E é nessa camada que se realiza o fantástico conjunto de reações químicas que convencionamos chamar de pensamento, lógica, razão. Essa é a parte que gosta de dizer que está no comando, afinal, vivemos em um mundo que valoriza a lógica.
Então o amor – esse sublime sentimento que embala nossos sonhos, acalenta nossas noites, alegra nossos dias e transforma a vida em algo que vale a pena – é função exclusiva do sistema límbico, a camada intermediária, superior aos instintos, mas inferior ao pensamento. Certo?
Errado. O amor pode começar ali, mas ultrapassa esses limites e contamina todo o cérebro, pedindo a participação de nossa parte mais primitiva, animal, e de nossa função mais desenvolvida, racional. Sem essas ajudas, o amor não se sustenta, deixa de ser um prazer e passa a incomodar como um corpo estranho.
Qual é o tipo de colaboração que o pensamento dá ao sentimento? Como é que a lógica colabora com o amor? Como todos os mortais já surfei nas ondas do amor e da paixão. Já peguei agradáveis marolas e emocionantes tubos, mas já quebrei a cara em recifes traiçoeiros. A paixão sempre me pareceu ser uma onda ótima, mas descobri que ela, em geral, tem um paredão por baixo que a gente não vê.
Já me apaixonei pela pessoa errada, sim. Por que ela era a pessoa errada? Bem, porque seus valores eram outros e porque seu estilo de vida não combinava com o meu, pelo menos não naquela fase de minha vida. A cobrança era muito grande, bem maior que minha capacidade de atender. Esse desequilíbrio deu origem a uns tombos que machucaram a alma. Só que a paixão era grande e eu levei tempo para compreender a realidade.
O sistema límbico estava podendo, mandando em tudo dentro de mim. O córtex, coitado, estava cochilando, amortecido pelo prazer narcótico da paixão. Só quando ele acordou e tomou controle da prancha é que evitei os recifes pontiagudos da decepção amorosa. A relação terminou, e foi sofrido terminar. Mas hoje, de cabeça fria, fica claro que foi a melhor solução existente. Esse é apenas um exemplo de como o sentimento, quando não é auxiliado pela razão, pode provocar mais sofrimento que felicidade.
Mas eu prefiro mesmo é falar da situação oposta, quando a razão e a emoção estão em sintonia. Aliás, lembrome de ter ouvido do psiquiatra Paulo Gaudêncio exatamente esta frase: “A felicidade acontece quando a razão e a emoção se encontram na realização de uma atividade prazerosa”. Belíssima observação do Gaudêncio, um médico que conhece a alma humana porque é um estudioso e porque é um homem sensível. Quando razão e emoção se encontram na mais agradável de todas as atividades, o amor, surge a glória.
Entretanto, o amor é um sentimento maravilhoso, mas frágil. Lygia Fagundes Telles uma vez o comparou a uma bolha de sabão, e escreveu um conto com esse título. A escritora tem razão, pense. Uma bolha de sabão é uma coisinha brilhante, belíssima, com cores que se alternam. Flutua no ar e se eleva como se estivesse em busca do infinito. Até que estoura…
E por que estoura a bolha de sabão? Porque é sensível demais, frágil demais. Muito mais leve que a realidade cotidiana, pesada e cheia de farpas cortantes. O amor é assim mesmo, e se não for conservado ao abrigo das farpas cortantes acaba por estourar mesmo.
Por isso eu gosto do substantivo feminino “intenção”, que quer significar a proposta de um ato, de um movimento deliberado – portanto racional – em direção a um objetivo prédefinido. A vida de uma pessoa é cheia de intenções, às vezes boas, às vezes más. E é quando a intenção vira ação que as coisas acontecem, as transformações de processam, e o mundo segue seu curso evolutivo, que é resultante da subtração das más intenções.
Felizmente, no geral, as boas intenções predominam, mas precisamos observá-las no particular, em sua vida ou na minha, vidas corriqueiras de pessoas que só querem ser felizes. “Em minha vida”, talvez você diga, “não há más intenções.” É provável que não, mas coloque as coisas em outra perspectiva: a falta de boas intenções tem o mesmo poder destrutivo que a existência das más intenções.
Em outras palavras, o amor não sobrevive só de sua própria força e precisa ser apoiado pela força da razão?Uma relação a dois é feita de amor, de intenção e de ação. O amor sozinho é uma bolha de sabão. A intenção sozinha é inócua. A ação sozinha pode ser destrutiva. O encontro dos três é o caldo de cultura do sucesso da relação.
Conheço pessoas que se acomodaram na conquista. “Afinal, estamos juntos porque o amor no uniu”, diz o incauto, “E ele nos manterá unidos”, completa a imprudente. Não, o amor não sustenta, quem sustenta é a felicidade que vem dele, das ações que ele provoca e das coisas práticas da vida.
Lembro que ouvi um típico macho brasileiro afirmar que “a mulher” não se importaria que ele chegasse tarde em casa, pois ela estaria ocupada tomando conta das crianças. Ao lhe perguntar quando ele tinha lhe mandado flores pela última vez, ele me olhou como se eu tivesse feito uma pergunta sobre física quântica. E o último presente? Bem, esse foi mais fácil. “No Natal”, disse, rindo.
Para ser justo com os homens, também arrepiei os cabelos do braço presenciando alguns comportamentos femininos. Vi uma morena em uma roda de bar ser “sincera” com seu companheiro na frente dos amigos, deixando claro que eles se davam bem, mas que ele não era, em absoluto, “o amor de sua vida”. Nunca havia visto uma desdeclaração de amor tão explícita. Eu teria ido embora, e sem pagar a conta.
Qual é a intenção dessas pessoas que não colocam seu companheiro como algo importante em suas vidas? Que fruto espera colher um homem de uma árvore ressequida pela indiferença? Por que continua uma mulher ao lado de um homem a quem não dedica sequer suas melhores palavras?
O que pode fazer a razão em favor do amor é providenciar uma coleção de pequenos atos que, somados, conferem valor à relação e garantem sua longevidade. Não há nada mais sem graça que uma relação que se acomodou. Chega o fim, e é triste constatar que a imensa maioria dos casamentos desfeitos é vítima da rotina, mas esta não tem nada a ver com coisas que temos que fazer todos os dias, como levantar cedo, ir trabalhar, buscar as crianças na escola ou comprar pão na padaria da esquina. Essas são ações corriqueiras, normais, necessárias.
A rotina que mata o amor é a rotina do que não se faz. Da declaração de amor que deixa de ser feita, do elogio economizado à roupa simples do dia a dia, do sorriso sonegado ao acordar, da palavra de carinho roubada à despedida, da comemoração não feita em qualquer conquista, do boa noite seco, sem um beijo, antes de dormir.
O amor não se sustenta sem a intenção de amar e sem a ação pequena, mas constante, de alegrar o outro com sua presença. Acredito que o amor é uma grandeza que não se sustenta com o tempo. Ou aumenta ou diminui.
Qual é, afinal, sua intenção?