Verdade


Se apenas houvesse uma única verdade, não poderiam pintar-se cem telas sobre o mesmo tema.

Picasso

sexta-feira, 24 de dezembro de 2010

Dá para piorar?

Por Hélio Schwartsman

Hoje eu pretendia regalar o leitor com um comentário acerca das bases neurológicas do dualismo, mas, como estamos a menos de duas semanas da eleição, optei por guardar o libelo anticartesiano para uma ocasião mais tranquila e abordar um tema de maior densidade política. Juro, entretanto, que não vou falar de madre Dilma e são Serra, dos quais o leitor já deve estar saturado. O ponto que eu gostaria de discutir é mais profundo.

A democracia brasileira já fez notáveis avanços. O mais importante deles é que ela vem existindo sem interrupções há um quarto de século. Não é muito, mas mesmo as mais vetustas democracias do planeta tiveram de completar seus primeiros 25 anos. Igualmente importante, nesse período experimentamos uma real alternância de poder, que se deu sem traumas ou problemas, ao contrário do que prognosticavam setores influentes. Ainda que aos trancos, instituições se fortaleceram.
Há, é claro, muito mais por fazer. E já nem menciono o megarretrocesso que foi a canonização do pleito na reta final. Um dos problemas a meu ver mais gritantes é que, no plano institucional, o cidadão continua a ser tratado como um débil mental, que precisa ser protegido de si mesmo e tutelado pelo Estado.

O sintoma paroxístico dessa incongruência é a obrigatoriedade do voto. É absurda a ideia de que eu possa escolher, por sufrágio, as principais autoridades do Executivo e os membros do Parlamento, que escreverão e aplicarão as leis do país, mas seja considerado incapaz de decidir por mim mesmo se devo ou não comparecer às urnas. Um pequeno incômodo bienal em troca de uma democracia verdadeiramente representativa, dizem os patronos da medida. Discordo. O que está em jogo aqui são os próprios pressupostos da República: o Estado contemporâneo existe para servir ao cidadão, não o cidadão para servir ao Estado --pelo menos é o que defendo.

De toda maneira, esse está longe de ser o único caso de inversão de valores. Se há um vício que há muito corrói e onera a sociedade é o do corporativismo. Na semana passada, foi divulgada uma boa notícia: entre julho e agosto deste ano, os divórcios no Estado de São Paulo aumentaram 149% contra igual período do ano anterior. Calma, eu não sou um inimigo da família --embora esteja ficando, de tanto que ouvi falar em "valores cristãos" nas últimas semanas. O fenômeno ocorre porque, após a promulgação em julho da emenda constitucional que simplificou o processo, ficou bem mais fácil e barato para casais que já estavam separados regularizar sua situação. Ótimo. Somos todos contra a burocracia desnecessária. Só que essa não é a história inteira.

Além da já referida emenda constitucional, responde pelo aumento dos divórcios o projeto de lei 6.416, aprovado em 2007, e que simplificou as separações consensuais de casais sem filhos menores, dispensando-as de passar pelo crivo do Judiciário. Desde então, basta um registro público em cartório para consolidar a dissolução do matrimônio. (Podemos é claro nos perguntar por que diabos alguns ainda insistem em informar o Estado de que pretendem viver juntos, mas essa é uma outra questão).

Só que o PL 6.416 original era muito melhor e foi piorado pelo lobby da toga. Por intermédio do deputado e advogado Maurício Rands (PT-PE), a república dos bacharéis conseguiu introduzir uma emenda que obrigou as partes a contratarem os serviços de um advogado. Com isso, a separação se tornou um pouco menos simples e mais cara. Na verdade, bem mais cara. Em São Paulo, um advogado cobra, de acordo com a tabela da OAB, um valor mínimo de R$ 1.333,38 --e ainda pode levar 6% dos bens a repartir-- apenas para vistar a papelada. É claro que os cartórios não registram a separação sem o visto do causídico.

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva não teve a coragem de vetar essa excrescência, de modo que o projeto acabou sendo aprovado com a alteração ditada pelo lobby da OAB. No mínimo, a norma viola o princípio da razão suficiente: se não é necessário consultar um advogado para casar-se, tampouco deve ser obrigatório ouvir um na hora de dissolver a união por comum acordo. Mas é melhor eu parar antes que alguém tenha a ideia de fazer uma lei tornando necessária a presença de advogados em altares e dosséis.

Diga-se em favor dos advogados que colocar os interesses da categoria à frente dos da população não é exclusividade sua. Na mesma senda caminham notários, médicos, jornalistas, políticos. Prova o que eu digo a PEC dos cartórios, o projeto de lei do ato médico, a PEC do diploma de jornalista e, no caso dos políticos, quase tudo o que o Parlamento aprova.

Infelizmente, o Brasil é o país das corporações. Indivíduos e categorias profissionais, em vez de firmar-se pela excelência dos serviços que oferecem, preferem pegar uma carona no autoritarismo estatal para tornar sua atividade exclusiva quando não obrigatória.

Duvida? Tramitam no Congresso Nacional projetos que regulamentam, entre outras, as profissões de modelo de passarela (PL 4983/09), designer de interiores (PL 4525/08), detetives (25 PLs diferentes), babás (PL 1385/07), escritores (PL 3034/92), demonstrador de mercadorias (PL 5451/09), cerimonialista (PL 5425/09, cerimonialista (PL 5425/09), educador social (PL 5346/09), fotógrafo (PL 5187/09), depilador (PL 4771/09). Já resvalando no reino da fantasia, busca-se também regulamentar a ocupação de astrólogo (PL 6748/02) e terapeuta naturista (PL 2916/92).
O problema é que qualquer grupo que tenha um mínimo de organização obtém sucesso senão em todos os pleitos ao menos em parte deles. O resultado é uma miríade de leis e regulamentos que, afora atender às demandas corporativas, só servem para frustrar direitos e dificultar a vida.

Estas são algumas das questões que eu gostaria de ver discutidas na campanha eleitoral: Que tipo de Estado os brasileiros desejam? Quanto estão dispostos a pagar em impostos para obtê-lo? E de quanta autonomia vão querer abrir mão? É factível, razoável ou desejável que o Estado proíba um cidadão de usar drogas ou praticar aborto? Qual é o núcleo de direitos fundamentais que estão protegidos até mesmo de legisladores?

São essas as questões que os candidatos não discutem, pois isso implicaria revelar os setores que sairiam perdendo. E, para não perder votos, eles estão dispostos a ajoelhar-se, comungar e, mais grave, renegar as ideias que muito razoavelmente defenderam no passado. Estava errado o Tiririca: dá, sim, para piorar

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