Verdade


Se apenas houvesse uma única verdade, não poderiam pintar-se cem telas sobre o mesmo tema.

Picasso

quarta-feira, 22 de junho de 2011

A passagem do tempo

Revista Vida Simples nº 107 01/07/2011 - Por Eugênio Mussak

Envelhecer, atualmente, é diferente de antigamente. Ainda assim, como lidar bem com a chegada da velhice?
(...)
 Apesar disso, na prática estamos apenas postergando os sinais da velhice, mas eles chegarão algum dia.
Meu amigo Paulo, brilhante professor, me contou o que ele aprendeu de uma sociedade africana, daquelas que conservam suas tradições e sua cultura própria, apesar dos avanços da modernidade. Na tribo há uma casa, chamada “A Casa da Palavra”, onde os membros se reúnem para discutir os problemas coletivos.
Qualquer um pode comparecer e colocar suas dificuldades e suas opiniões, mas na Casa da Palavra há algumas regras. A primeira é que os mais velhos falarão por último, e suas palavras terão mais peso que as dos outros. O consenso é que os mais velhos, por terem vivido mais, acumularam mais experiência e, como consequência, sabedoria.
Nessa sociedade, ao contrário da nossa, todos têm um grande objetivo na vida: ficar velho. Pode parecer exótico demais para o pensamento ocidental, que alimenta o sonho da eterna juventude, mas faz todo sentido; primeiro porque isso significa sobreviver à dureza da vida naquelas paragens inóspitas; e, segundo, porque, lá, ser velho confere status, angaria admiração, respeito.
Tenho procurado adaptar essa filosofia à minha vida. Meu objetivo também é ficar velho, só que com alguns predicados, que passo a relatar:
O primeiro predicado é a saúde, sem a qual a vida se transforma em um martírio. Sempre lembrando que ter saúde significa algo mais do que não ter doenças. Saúde plena quer dizer disposição, energia, alegria de viver. É claro que os parâmetros mudam, e temos que respeitá-los.(...)
Hoje temos todas as condições para manter a saúde em dia. Exames preventivos, intervenções avançadas quando necessárias, alimentos saudáveis, espaços para a prática de atividades físicas, etc. Só que – sempre tem um “só que” – para lançarmos mão desses recursos, precisamos de um pré-requisito: a consciência, que gera a vontade que vira disciplina.  
O segundo predicado é a paz, pois sem ela perdemos a vontade de viver. E ter paz significa ter construído uma vida correta, carregar a certeza de que ajudamos, com nossa existência, este mundo a melhorar. Ter paz também emana das relações que construímos, a começar pela família, nosso grande esteio emocional. O amor de um companheiro, valor que tem forte componente lógico, pois depende do cotidiano, da construção conjunta de uma relação prazerosa, enriquecedora e amorosa. Também paz que vem dos filhos criados, a quem demos educação, amor e, como valor adicional, autonomia, que dá a eles liberdade, e aos pais a consciência do dever cumprido.  
O terceiro são as boas lembranças, pois elas são a marca de que vivemos uma vida intensa, plena, com descobertas, aventuras, alegrias, emoções. Meu sonho é poder anunciar, como Neruda: “Confesso que vivi”. Adoro ver as fotos antigas de viagens realizadas, museus conhecidos, festas freqüentadas, amigos visitados. Lembranças encontradas nos cantos da memória, principalmente quando garimpadas a dois, estão entre os momentos de maior alegria. É como viver de novo.
O quarto é a curiosidade, que mantém a mente ativa e a alma iluminada pela descoberta. Ser curioso significa querer saber, interessar-se por novos conhecimentos, áreas ainda inexploradas do saber. Não há idade para o aprendizado, para a incorporação de novas competências intelectuais. O mundo nunca foi tão rico de conhecimentos e de acesso a eles. Acho que verdadeiramente começamos a envelhecer quando perdemos a curiosidade.      
O quinto predicado essencial é o olhar otimista sobre o futuro, não importa o quanto ele dure. Acredito que ele será tão mais longo quanto maior a projeção que fizemos dele em nossa própria cabeça. Sonhos e planos nos mantém ativos, e mais, nos conservam vivos. “Quando temos um bom porquê, suportamos qualquer como”, resumiu Viktor Frankl, que não se deixou destruir pela infâmia de Auschwitz e contaminou a cabeça de seus companheiros de infortúnio com os sonhos de uma Europa em paz. A visão de futuro conservou aqueles homens vivos. Seu corpo foi protegido da morte pela mente ativa e pela esperança sempre presente.   
Já se disse que envelhecer é compulsório, mas amadurecer é opcional. O que significa, exatamente, esse comentário?
Se considerarmos que envelhecer é agregar anos à sua existência, e amadurecer é fazer isso com sabedoria, o ditado faz todo sentido. Ter vivido simplesmente não significa ter-se tornado maduro. É preciso aprender com a vida, e isso requer mais do que simplesmente viver. Antes de qualquer coisa é necessário ter humildade, a primeira qualidade dos sábios.
Infelizmente todos conhecemos pessoas que chegam à aurora de sua existência de maneira amarga, com postura de vítima, sem ânimo de olhar para trás em busca das lembranças que nos ensinam e muito menos para frente, onde deveriam estar o sonhos que nos motivam.
Por outro lado, todos tivemos a oportunidade de conviver com os fantásticos dribladores do tempo, os que viveram intensamente o presente sempre lançando um olhar para o passado, que no presente se chama memória, e outro para o futuro, que no agora se chama sonho. A junção dos três tempos aumenta imensamente a qualidade de conferir sabedoria. Quando penso nos atributos que descrevi acima, percebo que eles só poderão ser exercidos na velhice se forem preparados ao longo da vida.
Saúde é cuidado, prevenção clínica e bons hábitos. Paz é um caminho que só se faz caminhando. Boas lembranças dispensam comentários, pois só podemos lembrar do que já passou, o que fizemos com o tempo que nos foi dado viver. Curiosidade é uma qualidade infantil que pode virar hábito arraigado e ser mantido pela vida. Olhar otimista sobre o futuro será, então, consequência dos demais.
(...)
Quando perguntaram Mário Lago sobre seu segredo de longevidade, ele respondeu alegre: “Fiz um acordo de coexistência pacífica com o tempo: nem ele me persegue, nem eu fujo dele. Um dia a gente se encontra”.
É claro que todos nos encontraremos com o tempo em algum lugar, e saberemos que terá chegado nossa hora. Só que essa precisa hora é a única que não nos pertence de fato. Já todas as outras, as cerca de 800 mil horas que fazem parte de uma vida bem cuidada, essas sim, nos pertencem. Podemos dispor delas como quisermos. E só terá o objetivo de ficar velho aquele que entender o valor de cada uma delas, e fizer, com tempo, aquele famoso acordo de coexistência pacífica.

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