Sonharás uns amores de romance, quase impossíveis. Digo-lhe que faz mal, que é melhor contentar-se com a realidade; se ela não é brilhante como os sonhos, tem pelo menos a vantagem de existir.
Machado de Assis
Verdade
Se apenas houvesse uma única verdade, não poderiam pintar-se cem telas sobre o mesmo tema.
Picasso
domingo, 30 de dezembro de 2012
domingo, 23 de dezembro de 2012
domingo, 16 de dezembro de 2012
domingo, 9 de dezembro de 2012
Minimamente Feliz
Leila Ferreira
A felicidade é a soma das pequenas felicidades. Li essa frase num outdoor em Paris e soube, naquele momento, que meu conceito de felicidade tinha acabado de mudar. Eu já suspeitava que a felicidade com letras maiúsculas não existia, mas dava a ela o benefício da dúvida. Afinal, desde que nos entendemos por gente aprendemos a sonhar com essa felicidade no superlativo. Mas ali, vendo aquele outdoor estrategicamente colocado no meio do meu caminho (que de certa forma coincidia com o meio da minha trajetória de vida), tive certeza de que a felicidade, ao contrário do que nos ensinaram os contos de fadas e os filmes de Hollywood, não é um estado mágico e duradouro.
Na vida real, o que existe é uma felicidade homeopática, distribuída em conta-gotas. Um pôr-de-sol aqui, um beijo ali, uma xícara de café recém-coado, um livro que a gente não consegue fechar, um homem que nos faz sonhar, uma amiga que nos faz rir. São situações e momentos que vamos empilhando com o cuidado e a delicadeza que merecem alegrias de pequeno e médio porte e até grandes (ainda que fugazes) alegrias.
'Eu contabilizo tudo de bom que me aparece', diz Fabiana, também adepta da felicidade homeopática. 'Se o zíper daquele vestido que eu adoro volta a fechar (ufa!) ou se pego um congestionamento muito menor do que eu esperava, tenho consciência de que são momentos de felicidade e vivo cada segundo.
Elis conta que cresceu esperando a felicidade com maiúsculas e na primeira pessoa do plural: 'Eu me imaginava sempre com um homem lindo do lado, dizendo que me amava e me levando pra lugares mágicos Agora, viajando com frequência por causa de seu trabalho, ela descobriu que dá pra ser feliz no singular: 'Quando estou na estrada dirigindo e ouvindo as músicas que eu amo, é um momento de pura felicidade. Olho a paisagem, canto, sinto um bem-estar indescritível'.
Uma empresária que conheci recentemente me contou que estava falando e rindo sozinha quando o marido chegou em casa. Assustado, ele perguntou com quem ela estava conversando: 'Comigo mesma', respondeu. 'Adoro conversar com pessoas inteligentes' Criada para viver grandes momentos, grandes amores e aquela felicidade dos filmes, a empresária trocou os roteiros fantasiosos por prazeres mais simples e aprendeu duas lições básicas: que podemos viver momentos ótimos mesmo não estando acompanhadas e que não tem sentido esperar até que um fato mágico nos faça felizes.
Esperar para ser feliz, aliás, é um esporte que abandonei há tempos. E faz parte da minha 'dieta de felicidade' o uso moderadíssimo da palavra 'quando'. Aquela história de 'quando eu ganhar na Mega Sena', 'quando eu me casar', 'quando tiver filhos', 'quando meus filhos crescerem', 'quando eu tiver um emprego fabuloso' ou 'quando encontrar um homem que me mereça', tudo isso serve apenas para nos distrair e nos fazer esquecer da felicidade de hoje. Esperar o príncipe encantado, por exemplo, tem coisa mais sem sentido? Mesmo porque quase sempre os súditos são mais interessantes do que os príncipes; ou você acha que a Camilla Parker-Bowles está mais bem servida do que a Victoria Beckham?
Como tantos já disseram tantas vezes, aproveitem o momento, amigos. E quem for ruim de contas recorra à calculadora para ir somando as pequenas felicidades. Podem até dizer que nos falta ambição, que essa soma de pequenas alegrias é uma operação matemática muito modesta para os nossos tempos. Que digam. Melhor ser minimamente feliz várias vezes por dia do que viver eternamente em compasso de espera
A felicidade é a soma das pequenas felicidades. Li essa frase num outdoor em Paris e soube, naquele momento, que meu conceito de felicidade tinha acabado de mudar. Eu já suspeitava que a felicidade com letras maiúsculas não existia, mas dava a ela o benefício da dúvida. Afinal, desde que nos entendemos por gente aprendemos a sonhar com essa felicidade no superlativo. Mas ali, vendo aquele outdoor estrategicamente colocado no meio do meu caminho (que de certa forma coincidia com o meio da minha trajetória de vida), tive certeza de que a felicidade, ao contrário do que nos ensinaram os contos de fadas e os filmes de Hollywood, não é um estado mágico e duradouro.
Na vida real, o que existe é uma felicidade homeopática, distribuída em conta-gotas. Um pôr-de-sol aqui, um beijo ali, uma xícara de café recém-coado, um livro que a gente não consegue fechar, um homem que nos faz sonhar, uma amiga que nos faz rir. São situações e momentos que vamos empilhando com o cuidado e a delicadeza que merecem alegrias de pequeno e médio porte e até grandes (ainda que fugazes) alegrias.
'Eu contabilizo tudo de bom que me aparece', diz Fabiana, também adepta da felicidade homeopática. 'Se o zíper daquele vestido que eu adoro volta a fechar (ufa!) ou se pego um congestionamento muito menor do que eu esperava, tenho consciência de que são momentos de felicidade e vivo cada segundo.
Elis conta que cresceu esperando a felicidade com maiúsculas e na primeira pessoa do plural: 'Eu me imaginava sempre com um homem lindo do lado, dizendo que me amava e me levando pra lugares mágicos Agora, viajando com frequência por causa de seu trabalho, ela descobriu que dá pra ser feliz no singular: 'Quando estou na estrada dirigindo e ouvindo as músicas que eu amo, é um momento de pura felicidade. Olho a paisagem, canto, sinto um bem-estar indescritível'.
Uma empresária que conheci recentemente me contou que estava falando e rindo sozinha quando o marido chegou em casa. Assustado, ele perguntou com quem ela estava conversando: 'Comigo mesma', respondeu. 'Adoro conversar com pessoas inteligentes' Criada para viver grandes momentos, grandes amores e aquela felicidade dos filmes, a empresária trocou os roteiros fantasiosos por prazeres mais simples e aprendeu duas lições básicas: que podemos viver momentos ótimos mesmo não estando acompanhadas e que não tem sentido esperar até que um fato mágico nos faça felizes.
Esperar para ser feliz, aliás, é um esporte que abandonei há tempos. E faz parte da minha 'dieta de felicidade' o uso moderadíssimo da palavra 'quando'. Aquela história de 'quando eu ganhar na Mega Sena', 'quando eu me casar', 'quando tiver filhos', 'quando meus filhos crescerem', 'quando eu tiver um emprego fabuloso' ou 'quando encontrar um homem que me mereça', tudo isso serve apenas para nos distrair e nos fazer esquecer da felicidade de hoje. Esperar o príncipe encantado, por exemplo, tem coisa mais sem sentido? Mesmo porque quase sempre os súditos são mais interessantes do que os príncipes; ou você acha que a Camilla Parker-Bowles está mais bem servida do que a Victoria Beckham?
Como tantos já disseram tantas vezes, aproveitem o momento, amigos. E quem for ruim de contas recorra à calculadora para ir somando as pequenas felicidades. Podem até dizer que nos falta ambição, que essa soma de pequenas alegrias é uma operação matemática muito modesta para os nossos tempos. Que digam. Melhor ser minimamente feliz várias vezes por dia do que viver eternamente em compasso de espera
domingo, 2 de dezembro de 2012
FOME, SEDE E VONTADE DE LER
Fabiano Cambota
O sonho enfim se concretizaria com o obeso-literato. Aquele que, de madrugada, assalta a estante. Acha que não faz mal um Parnasianismozinho durante as refeições. Vai ao médico, o letricionista, que lhe passa uma dieta a base de romance. Nada muito pesado. Depois das 20 horas, só Sidney Sheldon. Mas cai em tentação e é flagrado com “Crime e Castigo” nas mãos. A família se preocupa. Tornou-se um livrólatra. Só o L.A. poderá salvá-lo. Nas reuniões com o grupo de viciados em literatura, ele conta sua saga: “Bem, comecei aos 10 anos. Como todo mundo. Fadas, chapéus, narizes que cresciam. Depois eu parti pros livros menores. Mas quando você menos espera, já está devorando um Jorge Amado numa sentada só”. Um “ooh” ecoa na sala. Senhoras comentam entre si. “Tão novinho e tão letrado né!”
Bibliotecas lotadas. Um silêncio ensurdecedor. Filas enormes para entrar. É muita gente morrendo de fomura. Consegue uma mesa, pede o menu.
- Por favor, me vê duas Cecílias. E pro menino pode ser um Lobato, que ele adora!!
- Senhor! Nossas Cecílias acabaram.
- O quê? E o que você sugere?
- Nosso Eça é legítimo, senhor! E temos Camões
Os biólogos, cientistas, cientificistas - enfim, qualquer estudioso do corpo humano - não cansam de afirmar e reafirmar a perfeição do corpo humano. A mais completa máquina já criada. Pois tratemos de discordar. O corpo necessita de combustíveis. Se precisamos de água, temos sede. De comida, temos fome. Nunca paramos de respirar. Por que nos falta uma necessidade de ler? Alias, não há sequer um nome pra isso. Simplesmente “a necessidade de ler”. Algo como a manutenção da intelectualidade, ou da saúde do cérebro. Ler. Ler como quem mata a sede. Como quem avança sobre um prato de comida. Um copo de água bem gelada e uma Clarice. Uma lasanha e um Machado. Para todos os dias, arroz, feijão e Allan Poe.
A falta de leitura deveria ser retratada em fotografia premiada pela National Geographic. Concorrentes do “Foto do ano de 2004”: O menino faminto da Etiópia, a baleia encalhada da Antártida e o Sem-livro do Brasil. Deveria estar estampado na cara do sujeito: “Sou subletrado”.
Não se justifica com a situação do nosso país. Não se trata aqui da falta de incentivo e de educação, já notória e discutida. Mas de atitude.
Os jovens - ah, sempre os jovens – não conseguem, ou não querem, enxergar o benefício da leitura. Qualquer leitura. E os jovens crescem, ou já cresceram, subletrados. Daí a pergunta: E se houvesse uma necessidade física? Penso que ainda há o que mudar na estrutura humana. Que tal essa dica? Hein! Na falta de uma terminologia melhor, fica a “fome de leitura”, ou a FOMURA. O menino grita: “Manhêêê, to com uma fomura danada”. E ela vem correndo com a Ruth Rocha que é pro menino parar de reclamar. O pai, no meio da noite, acorda com o choro do bebê. Dá a mamadeira, troca a fralda e lê o Ziraldo enquanto o neném não consegue sozinho. O casal de namorados vai sair a noite. Jantar, choppinho ou leitura? O rapaz mais afoito sugeriria um João Ubaldo. O divorciado um Nabokov. O mais esperto um Vinícius (sim, elas ainda adoram). E a combinação vinho, massa e Drummond? Irresistível.
Não se justifica com a situação do nosso país. Não se trata aqui da falta de incentivo e de educação, já notória e discutida. Mas de atitude.
Os jovens - ah, sempre os jovens – não conseguem, ou não querem, enxergar o benefício da leitura. Qualquer leitura. E os jovens crescem, ou já cresceram, subletrados. Daí a pergunta: E se houvesse uma necessidade física? Penso que ainda há o que mudar na estrutura humana. Que tal essa dica? Hein! Na falta de uma terminologia melhor, fica a “fome de leitura”, ou a FOMURA. O menino grita: “Manhêêê, to com uma fomura danada”. E ela vem correndo com a Ruth Rocha que é pro menino parar de reclamar. O pai, no meio da noite, acorda com o choro do bebê. Dá a mamadeira, troca a fralda e lê o Ziraldo enquanto o neném não consegue sozinho. O casal de namorados vai sair a noite. Jantar, choppinho ou leitura? O rapaz mais afoito sugeriria um João Ubaldo. O divorciado um Nabokov. O mais esperto um Vinícius (sim, elas ainda adoram). E a combinação vinho, massa e Drummond? Irresistível.
O sonho enfim se concretizaria com o obeso-literato. Aquele que, de madrugada, assalta a estante. Acha que não faz mal um Parnasianismozinho durante as refeições. Vai ao médico, o letricionista, que lhe passa uma dieta a base de romance. Nada muito pesado. Depois das 20 horas, só Sidney Sheldon. Mas cai em tentação e é flagrado com “Crime e Castigo” nas mãos. A família se preocupa. Tornou-se um livrólatra. Só o L.A. poderá salvá-lo. Nas reuniões com o grupo de viciados em literatura, ele conta sua saga: “Bem, comecei aos 10 anos. Como todo mundo. Fadas, chapéus, narizes que cresciam. Depois eu parti pros livros menores. Mas quando você menos espera, já está devorando um Jorge Amado numa sentada só”. Um “ooh” ecoa na sala. Senhoras comentam entre si. “Tão novinho e tão letrado né!”
Bibliotecas lotadas. Um silêncio ensurdecedor. Filas enormes para entrar. É muita gente morrendo de fomura. Consegue uma mesa, pede o menu.
- Por favor, me vê duas Cecílias. E pro menino pode ser um Lobato, que ele adora!!
- Senhor! Nossas Cecílias acabaram.
- O quê? E o que você sugere?
- Nosso Eça é legítimo, senhor! E temos Camões
- É que os portugueses são caros né! E meu médico me proibiu Camões durante a semana.
- Algum Andrade?
- Não sei. Não sei. To indeciso ainda.
Depois de alguns minutos pensando e testando a paciência do rapaz que lhe servia...
- Ah, vou de Paulo coelho mesmo que é só pra matar a fomura.
- Algum Andrade?
- Não sei. Não sei. To indeciso ainda.
Depois de alguns minutos pensando e testando a paciência do rapaz que lhe servia...
- Ah, vou de Paulo coelho mesmo que é só pra matar a fomura.
domingo, 25 de novembro de 2012
quarta-feira, 21 de novembro de 2012
domingo, 18 de novembro de 2012
The Fantastic Flying Books of Mr. Morris Lessmore
http://www.youtube.com/watch?v=tkJPMsWw6Z8&feature=related
A OBSESSÃO PELO MELHOR
Leila Ferreira
Estamos obcecados com "o melhor".
Não sei quando foi que começou essa mania, mas hoje só queremos saber do "melhor".
Tem que ser o melhor computador, o melhor carro, o melhor emprego, a melhor dieta, a
melhor operadora de celular, o melhor tênis, o melhor vinho.Bom não basta.
O ideal é ter o top de linha, aquele que deixa os outros pra trás e que nos distingue, nos
faz sentir importantes, porque, afinal, estamos com "o melhor".Isso até que outro "melhor" apareça e é uma questão de dias ou de horas até isso acontecer.
Novas marcas surgem a todo instante.Novas possibilidades também. E o que era melhor, de repente, nos parece superado,modesto, aquém do que podemos ter.
O que acontece, quando só queremos o melhor, é que passamos a viver inquietos, numa
espécie de insatisfação permanente, num eterno desassossego.Não desfrutamos do que temos ou conquistamos, porque estamos de olho no que falta conquistar ou ter.
Cada comercial na TV nos convence de que merecemos ter mais do que temos.
Cada artigo que lemos nos faz imaginar que os outros (ah, os outros...) estão vivendo
melhor, comprando melhor, amando melhor, ganhando melhores salários.Aí a gente não relaxa, porque tem que correr atrás, de preferência com o melhor tênis.
Não que a gente deva se acomodar ou se contentar sempre com menos. Mas o menos,
às vezes, é mais do que suficiente.Se não dirijo a 140, preciso realmente de um carro com tanta potência? Se gosto do que faço no meu trabalho, tenho que subir na empresa e assumir o cargo de
chefia que vai me matar de estresse porque é o melhor cargo da empresa?
Tenho pensado no quanto essa busca permanente do melhor tem nos deixados ansiosos e nos impedido de desfrutar o "bom" que já temos.
A casa que é pequena, mas nos acolhe.
O emprego que não paga tão bem, mas nos enche de alegria.
A TV que está velha, mas nunca deu defeito.
O homem que tem defeitos (como nós), mas nos faz mais felizes do que os homens "perfeitos".
As férias que não vão ser na Europa, porque o dinheiro não deu, mas vai me dar à chance de estar perto de quem amo...
O rosto que já não é jovem, mas carrega as marcas das histórias que me constituem.
O corpo que já não é mais jovem, mas está vivo e sente prazer.
Será que a gente precisa mesmo de mais do que isso?
Ou será que isso já é o melhor e na busca do "melhor" a gente nem percebeu?
Sofremos demais pelo pouco que nos falta
e alegramo-nos pouco pelo muito que temos.
Shakespeare
sexta-feira, 16 de novembro de 2012
José Saramago
No dia 16 de novembro, o ícone da nossa literatura José Saramago completaria 90 lindos anos de vida e de palavras.
Obrigada, José Saramago, pelo encantamento de suas palavras!
"Sorriso, diz-me aqui o dicionário, é o acto de sorrir. E sorrir é rir
sem fazer ruído e executando contracção muscular da boca e dos olhos.
O sorriso, meus amigos, é muito mais do que estas pobres definições, e
eu pasmo ao imaginar o autor do dicionário no acto de escrever o seu
verbete, assim a frio, como se nunca tivesse sorrido na vida. Por aqui
se vê até que ponto o que as pessoas fazem pode diferir do que dizem.
Caio em completo devaneio e ponho-me a sonhar um dicionário que desse
precisamente, exactamente, o sentido das palavras e transformasse em
fio-de-prumo a rede em que, na prática de todos os dias, elas nos
envolvem.
Não há dois sorrisos iguais. Temos o sorriso de
troça, o sorriso superior e o seu contrário humilde, o de ternura, o de
cepticismo, o amargo e o irônico, o sorriso de esperança, o de
condescendência, o deslumbrado, o de embaraço, e (por que não?) o de
quem morre. E há muitos mais. Mas nenhum deles é o Sorriso.
O
Sorriso (este, com maiúsculas) vem sempre de longe. É a manifestação de
uma sabedoria profunda, não tem nada que ver com as contracções
musculares e não cabe numa definição de dicionário. Principia por um
leve mover de rosto, às vezes hesitante, por um frêmito interior que
nasce nas mais secretas camadas do ser. Se move músculos é porque não
tem outra maneira de exprimir-se. Mas não terá? Não conhecemos nós
sorrisos que são rápidos clarões, como esse brilho súbito e inexplicável
que soltam os peixes nas águas fundas? Quando a luz do sol passa sobre
os campos ao sabor do vento e da nuvem, que foi que na terra se moveu? E
contudo era um sorriso."
O sorriso, meus amigos, é muito mais do que estas pobres definições, e eu pasmo ao imaginar o autor do dicionário no acto de escrever o seu verbete, assim a frio, como se nunca tivesse sorrido na vida. Por aqui se vê até que ponto o que as pessoas fazem pode diferir do que dizem. Caio em completo devaneio e ponho-me a sonhar um dicionário que desse precisamente, exactamente, o sentido das palavras e transformasse em fio-de-prumo a rede em que, na prática de todos os dias, elas nos envolvem.
Não há dois sorrisos iguais. Temos o sorriso de troça, o sorriso superior e o seu contrário humilde, o de ternura, o de cepticismo, o amargo e o irônico, o sorriso de esperança, o de condescendência, o deslumbrado, o de embaraço, e (por que não?) o de quem morre. E há muitos mais. Mas nenhum deles é o Sorriso.
O Sorriso (este, com maiúsculas) vem sempre de longe. É a manifestação de uma sabedoria profunda, não tem nada que ver com as contracções musculares e não cabe numa definição de dicionário. Principia por um leve mover de rosto, às vezes hesitante, por um frêmito interior que nasce nas mais secretas camadas do ser. Se move músculos é porque não tem outra maneira de exprimir-se. Mas não terá? Não conhecemos nós sorrisos que são rápidos clarões, como esse brilho súbito e inexplicável que soltam os peixes nas águas fundas? Quando a luz do sol passa sobre os campos ao sabor do vento e da nuvem, que foi que na terra se moveu? E contudo era um sorriso."
domingo, 11 de novembro de 2012
Clarice Lispector
E será inútil esforçar-se para esquecer - tudo o que um dia se misturou carregará consigo partículas do outro. Talvez venha o arrependimento, o recomeço, as cores voltem a brilhar como antes - mas não se pode contar com isso. Não se pode contar com nada. O único caminho viável é viver e correr o sagrado risco do acaso. E substituir o destino pela probabilidade.
domingo, 4 de novembro de 2012
domingo, 28 de outubro de 2012
Motivação Ilusória
Luah Galvão
Faz alguns minutos falei pelo face com um amigo que não via faz tempo e naquele papo … “Como você tá ??” etc … ele responde ” Tô ótimo, tô super bem, suuuperrrr bem mesmo … (tempo) … Mas tô quase infartando, tô tomando lexotan na veia, tô exauto, tô …”
Quando nosso “papo” acabou fiquei pensando … “Quem disse que ele está bemmmm?? Quem foi que convenceu o cara disso??”. Não dá pra estar bem assim !!! Que “motivação” é essa??.
Resolvi escrever sobre esse assunto que está se “alastrando” e tomei a liberdade de apelidar esse tipo de fenômeno como “motivação ilusória”. A “vítima” jura que está maravilhosamente bem mas como vocês puderam ver; não está !! É tudo ilusão !!
Cada dia estão sendo criados mais artifícios que apoiam essa inversão total de valores. O cidadão se mata, despende horas e mais horas extras no trabalho, acumula funções, é cada vez mais cobrados e alguém diz que isso é o que tem que ser feito para alcançar a felicidade, a plenitude e a segurança profissional !!!
Cá entre nós, depois de um enfarto o que adiantou trabalhar tanto ??
Mas vamos continuar pois esse é um assunto interessante … cada vez mais as empresas bombardeiam seus colaboradores com uma infindável lista de atividades motivacionais, promocionais, institucionais, jogos, vivências, desafios … vários paliativos que ajudam a manter os ânimos e a ânima em meio a esse dia a dia estressante.
Ops, pera lá … isso é motivação real ?? Esse cara altamente adrenado no ambiente profissional volta pra casa com essa mesma carga de energia ?? O que acontece depois que fecha as portas de sua casa e encontra a sua intimidade ??
Quantos será que tem um encontro marcado com seu lexotan, com a sensação de vazio, com a exaustão absoluta, talvez até com a depressão ??
Será que sua alma realmente comprou esse excesso todo ?? Será que essa dose extra de motivação não é ilusória ?? E como tudo que é artificial, não se mantém!!
Minha lista de amigos medicados regularmente só aumenta e infelizmente só conseguem se manter “em alta”, tomando algumas “bolinhas”…
Será que o excesso extrai realmente o melhor das pessoas ?? Ou será que um dia a dia mais regrado e saudável não traria condições mais favoráveis ao desempenho “perfeito” ??
O que não dá é pra acreditarmos que estar bem é estar com uma lista gigante de problemas físicos e psíquicos. Essa sensação de motivação ilusória, só serve para acobertar nossos problemas e insatisfações e não é o que de fato vai trazer entusiamo para nossas vidas !!
Resolvi escrever sobre esse assunto que está se “alastrando” e tomei a liberdade de apelidar esse tipo de fenômeno como “motivação ilusória”. A “vítima” jura que está maravilhosamente bem mas como vocês puderam ver; não está !! É tudo ilusão !!
Cada dia estão sendo criados mais artifícios que apoiam essa inversão total de valores. O cidadão se mata, despende horas e mais horas extras no trabalho, acumula funções, é cada vez mais cobrados e alguém diz que isso é o que tem que ser feito para alcançar a felicidade, a plenitude e a segurança profissional !!!
Cá entre nós, depois de um enfarto o que adiantou trabalhar tanto ??
Mas vamos continuar pois esse é um assunto interessante … cada vez mais as empresas bombardeiam seus colaboradores com uma infindável lista de atividades motivacionais, promocionais, institucionais, jogos, vivências, desafios … vários paliativos que ajudam a manter os ânimos e a ânima em meio a esse dia a dia estressante.
Ops, pera lá … isso é motivação real ?? Esse cara altamente adrenado no ambiente profissional volta pra casa com essa mesma carga de energia ?? O que acontece depois que fecha as portas de sua casa e encontra a sua intimidade ??
Quantos será que tem um encontro marcado com seu lexotan, com a sensação de vazio, com a exaustão absoluta, talvez até com a depressão ??
Será que sua alma realmente comprou esse excesso todo ?? Será que essa dose extra de motivação não é ilusória ?? E como tudo que é artificial, não se mantém!!
Minha lista de amigos medicados regularmente só aumenta e infelizmente só conseguem se manter “em alta”, tomando algumas “bolinhas”…
Será que o excesso extrai realmente o melhor das pessoas ?? Ou será que um dia a dia mais regrado e saudável não traria condições mais favoráveis ao desempenho “perfeito” ??
O que não dá é pra acreditarmos que estar bem é estar com uma lista gigante de problemas físicos e psíquicos. Essa sensação de motivação ilusória, só serve para acobertar nossos problemas e insatisfações e não é o que de fato vai trazer entusiamo para nossas vidas !!
domingo, 21 de outubro de 2012
Palavras, Palavras...
Eugenio de Andrade
As palavras
São como um cristal,
Algumas, um punhal,
um incêndio.Outras,
orvalho apenas.
Secretas vêm, cheias de memória.
Inseguras navegam:
barcos ou beijos,
as águas estremecem.
Desamparadas, inocentes,
leves.
Tecidas são de luz
e são a noite.
E mesmo pálidas
verdes paraísos lembram ainda.
Quem as escuta?
Quem as recolhe, assim,
cruéis, desfeitas,
nas suas conchas puras?
Palavras não são dons.
São técnicas e esforços.
Dedicação e paixão.
Disciplina e Atenção!
Devemos usá-las para provocar o pensar e o sentir.
Ninguém aprende sem ter ensinado algo...
Ninguém ensina sem ter aprendido algo mais...
Tudo é uma troca: emitir, receber e sentir.
cruéis, desfeitas,
nas suas conchas puras?
Palavras não são dons.
São técnicas e esforços.
Dedicação e paixão.
Disciplina e Atenção!
Devemos usá-las para provocar o pensar e o sentir.
Ninguém aprende sem ter ensinado algo...
Ninguém ensina sem ter aprendido algo mais...
Tudo é uma troca: emitir, receber e sentir.
domingo, 14 de outubro de 2012
O que me define...
Clarice Lispector
Sou os brinquedos que brinquei, as gírias que usei, os nervosos e felicidades que já passei. Sou minha praia preferida, Garopaba, Maresias, Ipanema, sou os amores que vivi, as conversas sérias que tive com meu pai: Eu sou o que me faz lembrar!!!
Sou a saudade que sinto, sou um sonho desfeito ao acaso, sou a infância que vivi, sou a dor de não ter dado certo, sou o sorriso por tudo que conquistei, sou a emoção de um trecho de livro, da cena de filme que me arrancou lágrimas: Eu sou o que me faz chorar!!!
Sou a raiva de não ter alcançado, sou a impotência diante das injustiças que não posso mudar, sou o desprezo pelo que os outros mentem, sou o desapontamento com o governo, o ódio que isso tudo dá. Sou o que eu remo, sou o que eu não desisto, sou o que eu luto, sou a indignação com o lixo jogado do carro, a ardência da revolta ao ver um animal abandonado: Eu sou o que me corrói!!!
Eu sou o que eu luto, o que consigo gerar através de minhas verdades, sou os direitos que tenho e os deveres a que me obrigo, sou a estrada por onde corro, sou o que ensino e, sobretudo, o que aprendo: Eu sou o que eu pleiteio!!!
Eu não sou da forma como me visto, não sou da forma como me comporto, não sou o que eu como, muito menos o que eu bebo. Não sou o que aparento ser:
Sou a saudade que sinto, sou um sonho desfeito ao acaso, sou a infância que vivi, sou a dor de não ter dado certo, sou o sorriso por tudo que conquistei, sou a emoção de um trecho de livro, da cena de filme que me arrancou lágrimas: Eu sou o que me faz chorar!!!
Sou a raiva de não ter alcançado, sou a impotência diante das injustiças que não posso mudar, sou o desprezo pelo que os outros mentem, sou o desapontamento com o governo, o ódio que isso tudo dá. Sou o que eu remo, sou o que eu não desisto, sou o que eu luto, sou a indignação com o lixo jogado do carro, a ardência da revolta ao ver um animal abandonado: Eu sou o que me corrói!!!
Eu sou o que eu luto, o que consigo gerar através de minhas verdades, sou os direitos que tenho e os deveres a que me obrigo, sou a estrada por onde corro, sou o que ensino e, sobretudo, o que aprendo: Eu sou o que eu pleiteio!!!
Eu não sou da forma como me visto, não sou da forma como me comporto, não sou o que eu como, muito menos o que eu bebo. Não sou o que aparento ser:
EU SOU O QUE NINGUÉM VÊ!!!
domingo, 7 de outubro de 2012
SE EU PUDESSE
Jorge Luiz Borges
Se eu pudesse viver novamente minha vida,
na próxima trataria de cometer mais erros.
Não tentaria ser tão perfeito: relaxaria mais.
Seria mais tolo ainda do que tenho sido.
na verdade, bem poucas coisas levaria a sério...
Viajaria mais, contemplaria mais entardeceres,
subiria mais montanhas, nadaria mais rios.
Iria a lugares onde nunca fui.
Tomaria mais sorvete e menos lentilha.
Teria mais problemas reais e menos imaginários...
Eu fui uma dessas pessoas que viveu
sensata e produtivamente cada minuto de sua vida.
Claro que houve momentos de alegria...
Mas se eu pudesse voltar a viver,
trataria de ter somente bons momentos,
porque, se não sabem, disso é feita a vida:
só de bons momentos;
não os perca agora!
Eu era um desses que nunca ia a parte alguma
sem um termômetro, uma bolsa de água quente,
um guarda-chuva e um para-quedas...
Se eu pudesse voltar a viver,
começaria a andar descalço no início da primavera
e continuaria assim até o fim do outono.
Daria mais voltas na minha rua,
contemplaria mais amanheceres
e brincaria com mais crianças
cantando canções de amores,
se ainda tivesse uma vida pela frente.
Mas, já viram, tenho 85 anos
e, só me resta sonhar...!
Se eu pudesse viver novamente minha vida,
na próxima trataria de cometer mais erros.
Não tentaria ser tão perfeito: relaxaria mais.
Seria mais tolo ainda do que tenho sido.
na verdade, bem poucas coisas levaria a sério...
Viajaria mais, contemplaria mais entardeceres,
subiria mais montanhas, nadaria mais rios.
Iria a lugares onde nunca fui.
Tomaria mais sorvete e menos lentilha.
Teria mais problemas reais e menos imaginários...
Eu fui uma dessas pessoas que viveu
sensata e produtivamente cada minuto de sua vida.
Claro que houve momentos de alegria...
Mas se eu pudesse voltar a viver,
trataria de ter somente bons momentos,
porque, se não sabem, disso é feita a vida:
só de bons momentos;
não os perca agora!
Eu era um desses que nunca ia a parte alguma
sem um termômetro, uma bolsa de água quente,
um guarda-chuva e um para-quedas...
Se eu pudesse voltar a viver,
começaria a andar descalço no início da primavera
e continuaria assim até o fim do outono.
Daria mais voltas na minha rua,
contemplaria mais amanheceres
e brincaria com mais crianças
cantando canções de amores,
se ainda tivesse uma vida pela frente.
Mas, já viram, tenho 85 anos
e, só me resta sonhar...!
domingo, 30 de setembro de 2012
Caio Fernandes de Abreu
"Te desejo uma fé enorme.
Em qualquer coisa, não importa o quê.
Desejo esperanças novinhas em folha, todos os dias.
Tomara que a gente não desista de ser quem é por nada nem ninguém deste mundo.
Que a gente reconheça o poder do outro sem esquecer do nosso.
Que as mentiras alheias não confundam as nossas verdades,
Em qualquer coisa, não importa o quê.
Desejo esperanças novinhas em folha, todos os dias.
Tomara que a gente não desista de ser quem é por nada nem ninguém deste mundo.
Que a gente reconheça o poder do outro sem esquecer do nosso.
Que as mentiras alheias não confundam as nossas verdades,
mesmo que as mentiras e as verdades sejam impermanentes.
Que friagem nenhuma seja capaz de encabular o nosso calor mais bonito.
Que, mesmo quando estivermos doendo, não percamos de vista nem de sonho a ideia da alegria.
Tomara que apesar dos apesares todos, a gente continue tendo valentia suficiente
Que friagem nenhuma seja capaz de encabular o nosso calor mais bonito.
Que, mesmo quando estivermos doendo, não percamos de vista nem de sonho a ideia da alegria.
Tomara que apesar dos apesares todos, a gente continue tendo valentia suficiente
para não abrir mão de se sentir feliz.
As coisas vão dar certo.
Certo, muitas ilusões dançaram.
Mas eu me recuso a descrer absolutamente de tudo,
Certo, muitas ilusões dançaram.
Mas eu me recuso a descrer absolutamente de tudo,
eu faço força para manter algumas esperanças acesas, como velas.
Que 2011 seja doce.
Que 2011 seja doce.
Repito sete vezes para dar sorte: que seja doce que seja doce que seja doce e assim por diante.
Que seja bom o que vier, pra você."
Que seja bom o que vier, pra você."
domingo, 23 de setembro de 2012
domingo, 16 de setembro de 2012
domingo, 9 de setembro de 2012
sábado, 4 de agosto de 2012
segunda-feira, 30 de julho de 2012
Crítica e Auto-Crítica
Arthur SchopenhauerAssim como o homem carrega o peso do próprio corpo sem o sentir, mas sente o de qualquer outro corpo que quer mover, também não nota os próprios defeitos e vícios, mas só os dos outros. Entretanto, cada um tem no seu próximo um espelho, no qual vê claramente os próprios vícios, defeitos, maus hábitos e repugnâncias de todo o tipo. Porém, na maioria da vezes, faz como o cão, que ladra diante do espelho por não saber que se vê a si mesmo, crendo ver outro cão.
terça-feira, 26 de junho de 2012
Elogio aos Idiotas
Carlos
Cardoso Aveline
Na vida
acelerada do mundo de hoje, todos desejam ser espertos, vivos e astuciosos.
Ninguém
quer ficar para trás – quando você está indo, os outros já estão voltando.
Ninguém mais diz frases com segundas intenções: dizem coisas com terceiras,
quartas e quintas intenções. Frases que, com sorte, um leigo no assunto precisa
de várias horas para decifrar e talvez dois ou três dias para imaginar uma
resposta à altura.
Em
compensação, alguém que diz diretamente aquilo que pensa acaba provocando
escândalo e mal-estar. É imediatamente catalogado como perigoso e tratado como
idiota. A sinceridade parece contrariar as normas da convivência e da boa
educação modernas. Assim, as pessoas bem educadas são amáveis, mas nem sempre
se deve acreditar no que dizem.
A
idiotice é um tema vasto, com muitos aspectos diferentes, e está inscrita com
destaque na cultura brasileira. Um exemplo disso são as
tradicionais piadas de português. Elas são uma projeção da brasilidade.
No fundo, os portugueses idiotas das piadas somos nós. Os episódios que
envolvem Manuel, Joaquim e Maria são todos parte da alma do nosso país –
tanto é assim que só são conhecidos no Brasil. Em Portugal, ao contrário,
circulam piadas de brasileiros.
É certo
que, quando examinamos a questão da inteligência e da idiotice, surgem algumas
perguntas indiscretas. O que é inteligência? O que é burrice? Quantos
tipos há de idiotas?
Podemos
dizer que inteligência é a capacidade de perceber o real. Como há
realidades muito diferentes no mundo, não existe um tipo único de inteligência.
Cada situação da vida requer um tipo específico de percepção, e por isso as
inteligências são múltiplas. A idiotice e a burrice podem ser
definidas como a incapacidade de perceber o real, e são tão variadas
quanto as inteligências. Há, portanto, muitos tipos de idiotas. Alguns deles,
inclusive, são espertalhões. Sim, há muitos idiotas que passam por
inteligentes, e também grande número de pessoas inteligentes que passam
por idiotas.
Além
disso, quem é inteligente em uma área da vida pode ser burro em outras. Você é
esperto em política e burro na hora de jogar futebol. Sua namorada pode ser
menos intelectual que você, na hora de discutir filosofia, mas há aspectos da
vida em que ela coloca você no chinelo. Há coisas que seus filhos fazem
bem melhor que você, como, talvez, compreender as sutilezas de um videogame ou
computador. Felizmente, ter sabedoria não é saber tudo. Ter sabedoria é saber o
mais importante – e administrar bem os seus talentos.
Dos
inúmeros tipos de idiotas, um dos mais interessantes foi examinado por François
Rabelais, o escritor francês do século 16. Ele abordou a imbecilidade doutoral
específica dos “eruditos” que usam palavras complicadas para não dizer coisa
alguma. Um deles – conta Rabelais – fez certo dia uma longa pesquisa para
saber “se uma entidade imaginária, zumbindo no vácuo, é capaz de devorar
segundas intenções.” Outro queria saber “se uma idéia platônica,
dirigindo-se para a direita sob o orifício do Caos, poderia afastar os átomos
de Demócrito”. Um terceiro investigava “se a frigidez hibernal dos antípodas,
passando numa linha ortogonal através da homogênea solidez do centro, podia,
por uma delicada antiperístase, aquecer a convexidade dos nossos calcanhares”.
Rabelais qualifica tais idiotas eruditos como professores cegos de
discípulos cegos, “que tateiam em um quarto escuro à procura de um gato preto
que não está lá”. [1] Tais indivíduos eram precursores de Rolando
Lero, o grande erudito que iluminou a televisão brasileira nos anos 1990.
Não é de todo impossível encontrar esse tipo de pesquisador fazendo teses
de pós-doutorado em certas universidades.
Conheço
seres humanos que têm tanto medo de parecer burros que aplaudem – ou pelo
menos fingem que compreendem – esse tipo de raciocínio longo, difícil,
sem significado algum. Mas tal constrangimento é desnecessário: deixando de
lado o medo de parecer idiotas, perderemos menos tempo fingindo e seremos
mais felizes.
O exemplo
de Albert Einstein, um dos maiores gênios da ciência moderna, é ilustrativo. No
início da vida, ele recusou-se a falar até os três anos de idade. Seus pais –
pessoas sensatas – pensavam que fosse retardado mental. Mais tarde, quando
Einstein ingressou na escola, ele foi novamente considerado imbecil. Seu
biógrafo é obrigado a admitir:
“Para os
colegas de classe, Albert era uma anomalia que não demonstrava interesse nenhum
pelos esportes. Para os professores, era um idiota que não conseguia decorar
nada e se comportava de modo estranho. Em vez de responder imediatamente a uma
pergunta, como os outros alunos, sempre hesitava. E quando respondia, movia os
lábios em silêncio, repetindo as palavras.” [2]
Décadas
mais tarde, Einstein deu o troco. Ele qualificou o nosso moderno sistema
educacional como uma estrutura que reprime a inteligência e busca
fabricar idiotas obedientes:
“A
humilhação e a opressão mental imposta por professores ignorantes e
pretensiosos causam danos terríveis na mente jovem; danos que não podem ser reparados
e que geralmente exercem influências maléficas na vida futura.”
E ainda:
“A
maioria dos professores perde tempo fazendo perguntas para descobrir o que o
aluno não sabe, quando a verdadeira arte consiste em descobrir o que o
aluno sabe ou é capaz de saber.” [3]
O sábio,
o santo e o idiota têm muito em comum, não só entre si, mas também com as
árvores e os animais. Todos eles vivem em um estado de comunhão com
todas as coisas que é independente do pensamento lógico. Isso contraria a
inteligência situada no hemisfério cerebral esquerdo, que rotula e classifica
todas as coisas. Essa inteligência gosta de colocar-se como se tivesse o
monopólio da consciência. Esse, aliás, é um dos grandes obstáculos para a
prática da meditação: a mente pensante não aceita passar o poder à mente que
contempla e que compreende a verdade sem necessidade de pensamentos.
A
primeira frase dos famosos “Ioga Sutras de Patañjali”, o tratado milenar sobre
Raja Ioga, afirma: “Ioga é a cessação das modificações da mente”. Para
alcançar a hiper-consciência, o estado mental do êxtase divino, é necessário
paralisar momentaneamente a mente inferior. O sábio é um ser que renunciou à
inteligência convencional e optou por uma percepção que a mente comum não
consegue captar. Por isso, mesmo no século 21, se aquele que ingressa no
caminho espiritual não tiver certos cuidados, pode ser considerado louco ou
idiota pelos parentes e amigos. Mas, do ponto de vista do sábio, a situação se
inverte e idiota é aquele que fica preso à lógica do mundo externo.
O ser
humano geralmente vive imerso em ilusões que ele mesmo criou. Para obter a
sabedoria, ele deve aprender algumas coisas e desaprender outras. Helena Blavatsky
escreveu:
“A
primeira condição necessária para obter autoconhecimento é tornar-se
profundamente consciente da ignorância; sentir com cada fibra do coração que
somos incessantemente iludidos. O segundo requisito é uma convicção ainda mais
profunda de que tal conhecimento – um conhecimento intuitivo e seguro – pode
ser obtido por esforço próprio. A terceira condição, a mais importante, é uma
determinação indômita de obter e enfrentar aquele conhecimento.” [4]
Quase
todo o potencial da mente humana ainda está por ser desenvolvido. A
ciência reconhece que usamos uma parcela muito pequena do cérebro. O
problema não é, pois, que sejamos um tanto limitados mentalmente. O lamentável
é que, sendo limitados, nos consideramos extremamente espertos. O filósofo
Sócrates, escolhido como o homem mais sábio da Grécia, explicou:
“Eu e os
homens notáveis de Atenas nada sabemos, e a única diferença entre eu e eles é
que eu, nada sabendo, sei que nada sei, enquanto que eles, nada sabendo,
pensam que sabem muito”.
Seguindo
na mesma linha de raciocínio, o pensador espanhol Balthazar Gracián
constatou:
“O maior
tolo é aquele que acha que não é, e que só os outros são. Para ser sábio não
basta parecer sábio, nem, muito menos, parecer sábio a si próprio. (....)
Embora o mundo esteja cheio de tolos, ninguém se julga um deles, nem receia ser
um.” [5]
Quando
superamos a necessidade de parecer inteligentes e deixamos de lado o medo de
parecer idiotas, libertamos nosso potencial criativo e a nossa capacidade de
conhecer novos aspectos da consciência. Quando temos coragem de colocar
toda nossa mente em algo, parecemos tolos e distraídos do ponto de vista
daqueles aspectos do mundo que optamos por ignorar completamente. Um exemplo
claro disso é dado pela história do grande cientista que caminha absorto pela
rua, perto da sua Universidade, quando encontra um colega e param para
conversar um minuto. Ao se despedirem, o cientista pergunta a
seu colega:
“Diga-me,
amigo, em que direção eu estava caminhando?”
“Você
estava indo para lá”, aponta o outro.
“Ah,
obrigado”, agradece o sábio distraído. Isso significa que eu já almocei.”
A
relativa idiotice dos sábios tem outro exemplo no caso do famoso escritor
inglês G. K. Chesterton. Ele morava em Londres quando ainda não havia
telefones, e vivia em um mundo tão abstrato que, certa vez, ficou aguardando
notícias de sua esposa em uma agência de correios após mandar o seguinte
telegrama para ela:
“Querida,
estou no mercado Harborough. Mas onde eu deveria estar, para fazer o
quê?” [6]
No
romance “O Príncipe Idiota”, o escritor Fiódor Dostoievsky descreve um
Cristo moderno que aparece na Rússia com 26 anos de idade – e se comporta como
um idiota desde todos os pontos de vista práticos. Ele não tem a couraça de
auto-defesa que caracteriza o tipo moderno de cidadão “esperto”.
Por isso as pessoas riem da cara dele e ele acha graça junto com os que o
desprezam. Chamam-no de burro – e ele concorda, amavelmente, porque só sabe
falar a verdade – e percebe que, realmente, não tem a astúcia dos
seus perseguidores.
Leon
Muishkin, o Cristo-príncipe de Dostoievsky, é epiléptico. O escritor descreve
os seus ataques como momentos de iluminação mística: “Não podia duvidar nem
admitir sequer a possibilidade de dúvida: naqueles momentos havia, com efeito, beleza
e oração, e aqueles instantes eram a maior síntese da vida (...). [E
ele] via claramente que a conseqüência evidente desses minutos indescritíveis
era a imbecilidade, o obscurecimento das suas faculdades, o idiotismo.” [7]
Dostoievsky
está certo em mais de um sentido. Epilepsia à parte, há um fato que poucos
estudiosos do caminho do autoconhecimento confessam abertamente: quando se
desperta a inteligência espiritual, perde-se, irremediavelmente, a inteligência
astuciosa que permite coisas como mentir com habilidade, usar a lisonja na
medida certa e falar a verdade só quando ela traz vantagens.
Desse
despertar vem a sensação de nada saber diante do mundo. A expansão
mística da consciência traz consigo uma inocência idiota em relação à
realidade externa. É por isso que os sábios renunciam à agitação e a todas as
formas de esperteza associadas com ela, e preferem optar por uma vida retirada.
Quem deseja alcançar a consciência celestial deve abandonar a inteligência
egoísta e assumir, em certos assuntos, a aparência de um abobado.
“A razão
expulsou Deus com chicotadas para o meio dos loucos”, escreveu Louis Pauwels.[8]
E o escritor sufi Idries Shah – grande pensador do islamismo
místico– escreveu um livro intitulado “A Sabedoria dos Idiotas”.
Na abertura da obra, Idries Shah explicou:
“Aquilo
que os homens de pensamento estreito imaginam que seja sabedoria é
freqüentemente considerado loucura pelos sábios sufis. Assim os sufis, por sua
vez, chamam a si mesmos de ‘idiotas’. Por uma feliz coincidência, a palavra
árabe que significa ‘santo’ (wali) tem a mesma equivalência numérica que
a palavra que significa ‘idiota’ (balid). Assim, temos dois motivos para
ver os grandes sufis como os nossos Idiotas.” [9]
A astúcia
impede o autoconhecimento. A milenar tradição chinesa conta que
certa vez Confúcio procurou Lao-tzu – fundador da filosofia taoísta – e fez a
ele uma complexa consulta sobre uma questão ritualística que considerava de
grande importância. Desprezando a pergunta sofisticada, o mestre
disse a Confúcio:
“Você
precisa abandonar a sua esperteza e deixar de lado a espada da sua ambição. Os
grandes sábios freqüentemente parecem tolos e estúpidos. Aqueles que obtiveram
o verdadeiro aprendizado não insistem em ostentar o seu conhecimento.” [10]
Um dos
maiores místicos cristãos de todos os tempos, São João da Cruz, estudou filosofia
clássica grega na juventude. O modo como ele descreve poeticamente o paradoxo
do “nada saber para perceber tudo” coincide com a tradição socrática, mas
também pode ser visto como uma ioga:
“Para
chegares a saborear tudo,
Não
queiras ter gosto em coisa alguma.
Para
chegares a possuir tudo,
Não
queiras possuir coisa alguma.
Para
chegares a ser tudo,
Não
queiras ser coisa alguma.
Para
chegares a saber tudo,
Não
queiras saber coisa alguma.” [11]
E João da
Cruz descreveu o seu êxtase místico nesses versos:
“Entrei
onde não sabia,
e fiquei
sem saber,
toda a
ciência transcendendo.
Eu não
sabia onde entrava,
porém,
quando lá me vi,
sem saber
onde estava,
grandes
coisas entendi.
Não direi
o que senti
pois
fiquei sem saber,
toda a
ciência transcendendo.
De paz e
de piedade
era a
ciência perfeita,
em
profunda solidão,
diretamente
entendida;
era coisa
tão secreta,
que
fiquei balbuciando,
toda a
ciência transcendendo.
Estava tão
enlevado,
tão
absorto e desatento,
que meu
sentido ficou
de todo
sentir privado;
e o
espírito dotado
de um
entendimento sem entender
toda
ciência transcendendo.” [12]
Embora
seja verdade que nem todo idiota alcança a iluminação, é certo que todo iluminado
tem algo de idiota e parecerá um tolo desde mais de um ponto de
vista.
O
aprendiz da arte de viver deve romper os limites das chantagens do que é
“politicamente correto” e deixar de lado os mecanismos da ignorância coletiva
que buscam impor falsos consensos em função dos interesses desse ou daquele
esquema de poder.
Mas, para
fugir da idiotice coletiva organizada – com sua psicologia de rebanho
que proíbe o indivíduo de pensar por si mesmo – é indispensável
vencer o medo de que nos seja colocado o rótulo de ovelha negra, ou de
idiota. Só assim poderemos viver com responsabilidade própria e
independência pessoal. Há uma história de Ramakrishna, o sábio indiano do
século 19, que ilustra bem esse ponto:
“Era uma
noite completamente escura, séculos atrás. De repente, um sujeito acende uma
tocha para iluminar seu caminho e vai até a casa do vizinho. Ele quer pedir
fogo, porque a noite está demasiado escura. Depois de muito gritar e bater na
porta, o vizinho finalmente abre a porta, ouve seu pedido e responde: ‘Ah,
ah, você é muito imbecil! Raciocine! Você já tem uma tocha acesa na sua mão!’
” [13]
Todos nós
corremos o risco de fazer como o pobre coitado que bateu na porta do vizinho. A
verdade eterna e a fonte da felicidade estão em nossas próprias mãos. Só
dependem de nós. Mas insistimos em procurá-las nas coisas externas e pedi-las
de outras pessoas, renunciando à autonomia da nossa caminhada.
Os
sábios, como os idiotas, são íntegros. Eles não fingem que são
inteligentes e não têm medo de errar. Tentam, erram e conhecem o sabor da
derrota. Mas, quando acertam, são geniais. O idiota de hoje pode ser o
sábio de amanhã, graças à experiência adquirida. Em compensação, aquele que não
possui ânimo para tentar não tem chance alguma de aprender.
Por isso
devemos criar uma cultura em que é permitido a cada um cair e levantar
livremente. Porque somos todos apenas aprendizes. Erramos e aprendemos o tempo
todo, e devemos estimular em cada ser humano a coragem de buscar – mesmo
tropeçando – os seus sonhos mais elevados. Banindo da nossa cultura o medo ao
ridículo, cada um se permitirá um pouco mais de deselegância e autenticidade em
sua maneira de viver.
NOTAS:
[1]
“Vidas de Grandes Romancistas”, por Henry Thomas e Dana Lee Thomas, Editora
Globo, RJ-POA-SP, 1954, 244 pp., ver p. 32.
[2] “Einstein,
a Ciência da Vida”, uma biografia escrita por Denis Brian, Editora Ática, SP,
1998, 551 pp., ver pp. 1, 3 e 4.
[3] “Assim
Falou Einstein”, coletânea editada por Alice Calaprice, Ed. Civilização
Brasileira, RJ, 1998, 258 pp., ver pp. 64 (primeira frase da citação) e 63
(segunda frase).
[4] “Collected
Writings of H. P. Blavatsky”, TPH, Índia/EUA, volume VIII, 1990, p. 108.
[5]
“A Arte da Prudência”, Baltazar Gracián, Ed. Martin Claret, SP, 2001, 151
pp., ver p. 102.
[6] “Father
Brown Stories”, G.K. Chesterton, Penguin Books, England, ver Introdução.
[7] “El
Príncipe Idiota”, Fiódor Dostoievsky, Editorial Porrúa, S.A., México, 190
pp.,ver p. 158. Veja também o filme clássico de Akira Kurosawa baseado nesta
obra, “O Idiota”, atualmente disponível em DVD.
[8]
“Ramakrishna, o louco de Deus”, Introdução de Louis Pauwels, Planeta Especial,
Fevereiro de 1995, 146 pp. em formato de livro, ver p. 09.
[9] “Wisdom
of the Idiots”, Idries Shah, The Octagon Press, Londres, 1991, 179 pp., ver p.
5.
[10] “Tales
of the Taoist Immortals”, de Eva Wong, Shambhalla Inc., Boston, EUA,
2001, 168 pp., ver p. 56.
[11] “São
João da Cruz”, Obras Completas, Ed. Vozes, 1149 pp., ver p. 182.
[12] “São
João da Cruz – Pequena Biografia ”, Bernard Sesé, Ed. Paulinas, SP, 176 pp.,
1995, ver p. 135. Uma tradução não tão boa do mesmo trecho pode ser
encontrada nas pp. 38 a 40 das “Obras Completas”.
[13] “Pictorial
Parables of Sri Ramakrishna”, Advaita Ashrama, Calcutá, Índia, 65 p., 1997, p.
7.
Uma
primeira versão do artigo acima foi publicada pela Revista “Planeta”, de São
Paulo.
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