Verdade


Se apenas houvesse uma única verdade, não poderiam pintar-se cem telas sobre o mesmo tema.

Picasso

terça-feira, 1 de fevereiro de 2011

Casamento e expectativas

Por Elizabeth Gilbert no Livro Comprometida

(...) Veja, não quero me arriscar aqui a romantizar a vida simples e pitoresca dos camponeses. Vou deixar bem claro que não tenho a mínima vontade d trocar de vida com nenhuma das mulheres que conheci naquela aldeia hmong no Vietnã. Bastam as conseqüências dentarias para eu não querer a vida delas. Além disso, seria grotesco e ofensivo se eu tentasse adotar a sua visão de mundo. Na verdade, a marcha inexorável do progresso industrial indica que o mais provável é os hmong  adotarem a minha visão de mundo nos próximos anos.

Na verdade, isso já esta acontecendo. Agora que têm contato com mulheres ocidentais como eu no meio da multidão de turistas, as meninas de 12 anos, como a minha amiga Mai, vivem aqueles primeiros momentos importantíssimos de hesitação cultural. Chamo isso de momento espera ai: aquele instante fundamental em que as meninas das culturas tradicionais começam a pensar no que exatamente as aguarda caso se casem com 13 anos e comecem a ter filhos logo depois. Começam a perguntar se não gostariam de escolher outra coisa ou, alias, se simplesmente não gostariam de escolher. Assim que as meninas das sociedades fechadas começam a ter essas idéias tudo explode. Mai, trilingue, esperta e observadora, já vislumbra outro conjunto de opções na vida. Logo, logo, começaria a fazer exigências. Em outras palavras: pode ser tarde demais até para os hmong serem hmong.

Portanto, não, não me disponho – ou talvez nem possa – abrir mão da minha vida de anseios individualistas, todos direitos de nascença da minha modernidade. Como a maioria dos seres humanos, depois de me mostrarem opções vou preferir ter escolha na vida: escolhas expressivas, individualistas, inescrutáveis e indefensáveis, às vezes talvez arriscadas... mas todas minhas. Na verdade, a simples quantidade de escolhas que já me ofereceram na vida – uma procissão de opções quase embaraçosas – faria saltarem da cabeça os olhos da minha amiga, a avó hmong, Em conseqüência dessa liberdade pessoal, minha vida me pertence e se parece comigo, a um nível impensável nos morros do norte do Vietnã, mesmo hoje. É quase como se eu fosse uma cepa de mulher inteiramente nova (pode nos chamar de Homo ilimitatus). E embora nós, dessa admirável nova espécie, gozemos de possibilidades vastas e magníficas, com alcance quase infinito, é importante lembrar que essas vidas ricas em escolhas têm o potencial de criar um tipo próprio de problema. Somos suscetíveis a incertezas emocionais e neuroses provavelmente nada comuns aos hmong, mas que hoje em dia fogem ao controle entre os meus contemporâneos de, digamos, Baltimore.

O problema, falando simplesmente, é que não podemos escolher tudo ao mesmo tempo. Assim, corremos o risco de ficar paralisados pela indecisão, com um pavor terrível de que cada escolha esteja errada. (...) As ocasiões em que realmente optamos e depois sentimos ter assassinado algum aspecto do nosso ser ao tomar aquela única decisão concreta são igualmente inquietantes. Quando escolhemos a porta numero 3, tememos matar uma parte diferente da nossa alma, mas igualmente decisiva, que só poderia se manifestar se tivéssemos entrado pela porta numero um ou pela porta numero 2.

(...) Imagine uma vida em que, todos os dias, alguém enfrenta não duas, nem três, mas dúzias de escolhas, e da para erceber porque o mundo moderno , apesar de todas as suas vantagens, se tornou em altíssimo grau uma máquina fazedora de neurose. Num mundo de possibilidades tão abundantes, muitos de nós simplesmente brocham de indecisão. Ou então a jornada da vida sai dos trilhos varias vezes, e voltamos para experimentar as portas que deixamos de lado na primeira rodada, desesperados para acerta agora. Ou nos tornamos comparadores compulsivos, sempre medindo a nossa vida em comparação com a dos outros, achando no fundo que deveríamos ter seguido aquele caminho que eles escolheram.

É claro que a comparação compulsiva só leva a caso debilitantes de Lebensneid, ou inveja da vida, como dizia Nietzsche: a certeza de que alguém é muito mais sortudo do que nós e de que, se tivéssemos aquele corpo, aquele marido, aqueles filhos, aquele emprego, tudo seria mais fácil, maravilhoso e feliz. ( Um terapeuta amigo meu define esse problema simplesmente como a doença que faz todos os meus pacientes solteiros sonharem secretamente em se casar e todos os meus pacientes casados sonharem secretamente em ser solteiros). Como é difícil ter certeza, as decisões de todos se transformam em acusações ás decisões de todos, e como não há mais modelo universal do que é um bom homem ou uma boa mulher, quase se tem de conquistar uma medalha pessoal de mérito em navegação e orientação emocional para achar o caminho pela vida.

Todas essas escolhas e todo esse anseio podem criar um tipo esquisito de assombração na vida, como se os fantasmas de todas as outras possibilidades não escolhidas ficassem para sempre num mundo de sombras à nossa volta, perguntando sem parar: Tem certeza de que era isso mesmo que vc queria? E essa pergunta corre mais risco de nos perseguir no casamento, exatamente porque o investimento emocional nessa escolha personalíssima passou a ser imenso.

Pode acreditar, o casamento ocidental moderno tem muitos pontos positivos em relação ao casamento hmong tradicional (...). Mas há uma dádiva importantíssima que a noiva hmong tradicional quase sempre recebe no dia do casamento e que costuma se esquivar da noiva ocidental moderna: o dom da certeza. Em geral, quando só há um caminho a frente podemos ter confiança de que é o caminho certo. E  a noiva cuja expectativa de felicidade é necessariamente pequena talvez esteja mais protegida do risco de sofrer um decepção devastadora pelo caminho.

Admito que, até hoje, não sei direito como usar essa informação. Não consigo me forçar a adotar o lema Queira menos!. Também não consigo imaginar que daria a moça as vésperas do casamento o conselho de reduzir as expectativas para se feliz na vida. Essa idéia vai no sentido contrário de todos os ensinamentos modernos que recebi. Também já vi essa tática sair pela culatra. Tive uma amiga da faculdade que estreitou de propósito as opções de vida, como se quisesse se vacinar contra expectativas demasiado ambiciosa. (...) Com confiança inabalável anunciou que se tornaria apenas esposa e mãe. A simplicidade desse arranjo lhe pareceu totalmente segura: a certeza comparada às convulsões de indecisão de que tantas colegas mais ambiciosas sofriam. Mas doze anos depois, quando o marido a trocou pro uma mulher mais nova, a raiva da minha amiga e a sensação de ter sido traída foram as mais ferozes que já vi. Ela praticamente implodiu de ressentimento; não tanto contra o marido, mas contra o universo (...).Eu pedi tão pouco! Não parava de dizer, como se bastassem as exigências diminutas para protegê-la de decepções. Mas acho que ela se enganava; na verdade pediu muito. Ousara pedir felicidade e ousara esperar que a felicidade viesse do casamento. Isso é tanto que é impossível pedir mais.

(...) também peço muitíssimo. Isso é emblemático de nossa época. Permitiram-me esperar grandes coisas na vida. Permitiram-me esperar muito mais da experiência de amar e viver do que jamais se permitiu a maioria das mulheres da história. Quanto as questões de intimidade, quero muitas coisas do meu homem, todas as mesmo tempo. Isso me lembra uma historia que minha irmão me contou sobre uma inglesa que visitou os EUA no inverno de 1919 e que, escandalizada, escreveu uma carta para casa dizendo que nesse estranho país da America havia mesmo gente que viva com a expectativa de aquecer todas as partes do corpo ao mesmo tempo! A tarde que passei debatendo o casamento com as hmong me fez indagar se eu, nas questões do coração, também não me tornei uma pessoa assim – uma mulher que acredita que o meu amado deveria ser capaz de, num passe de mágica, manter aquecida todas as partes do meu ser emocional ao mesmo tempo.

Nós, americanos, costumamos dizer que o casamento é trabalho duro. (...) Mas como é que o casamento vira trabalho duro? É assim: o casamento vira trabalho duro quando despejamos todas as expectativas de felicidade da vida nas mãos de uma mera pessoa.  Manter isso funcionando é trabalho duro. Uma pesquisa recente feita com moças americanas descobriu que hoje em dia as mulheres procuram no marido, mais que tudo, um homem que as inspire, o que segundo todos os padrões, é pedir muito. Como termo de comparação, as moças da mesma idade entrevistadas em na década de 20 tinham mais probabilidade de escolher o parceiro com base em qualidades como decência e honestidade ou na capacidade de sustentar a família. Mas isso agora não basta. Agora queremos ser inspiradas pelos cônjuges! Diariamente! Vai estar à altura, querido?

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